Dedicado aos Companheiros do Núcleo de Meditação, Ciência e Saúde
Introdução
Por que e como a atenção plena (Mindfulness) é um dos recursos para a redução da ansiedade? Esta é a pergunta que procuraremos responder, a partir de algumas aproximações com as propostas teóricas que cientistas cognitivos vêm formulando desde os anos de 1950.
Os cientistas cognitivos têm como principal objeto de suas propostas teóricas as medições das inter-relações existentes entre as atividades do cérebro e os comportamentos humanos; assim, como os comportamentos podem determinar as atividades do cérebro. Constantemente, se deparando com uma das mais enigmáticas e interessantes questões que há séculos vêm intrigando a muitos: Como o cérebro e os comportamentos criam os significados que o indivíduo faz de si mesmo, do outro, do mundo e do que está para além do mundo? Conseguindo prestar atenção a diferentes informações sensoriais presentes nos campos sensoriais e nas cenas perceptivas em que entra em contato a cada instante?
Os campos sensoriais são os diversos estímulos sensoriais com os quais o corpo entra em contato. A fim de experimentar a entrada num campo sensorial, sugerimos ao leitor que enquanto estiver lendo os estímulos sensoriais apontados a seguir, direcione sua consciência aos objetos presentes em torno de si e apresentem a característica do estímulo. Os estímulos sensoriais serão: o formato dos objetos; os tipos de cores; a localização espacial dos objetos; e a detecção do movimento de um objeto, enquanto os outros permanecem parados.
As cenas perceptivas são as imagens mentais originadas a partir da percepção dos estímulos sensoriais no campo sensorial. A fim de aproximar-se do processo de formação das imagens na mente, sugerimos ao leitor focalizar e sustentar a atenção em um objeto presente à sua frente. E, após, fechar os olhos e observar as imagens que se formarão em sua consciência.
Podemos perceber que o potencial receptor do sistema visual não se dá somente a partir do contato da retina com um objeto externo; o que nos possibilita ter a percepção visual de determinados estímulos sensoriais. Nosso sistema visual também codifica os estímulos sensoriais originados a partir da memória, pensamento, imaginação etc.
Fundamentações
A partir das concepções dos campos sensoriais e das cenas perceptivas, e procurando responder à nossa pergunta inicial – por que e como a atenção plena é um dos principais recursos para a redução da ansiedade? -, nos deparamos com a conclusão da Ciência Neural: a limitação do sistema nervoso em processar todos os estímulos sensoriais presentes nos campos sensoriais. Por exemplo, não há como ter percepção dos inúmeros objetos, fenômenos e cenários que fazem parte do campo sensorial visual de aproximadamente 90 graus à nossa frente.
Há aqui um processo que funciona como um “holofote”1, em que o sistema nervoso tem a capacidade de projetar tal “facho de luz” e iluminar os estímulos sensoriais presentes no campo sensorial. Tal processo é a atenção que, a partir da focalização em um estímulo sensorial, possibilita a percepção desse estímulo.
Além da atenção possibilitar a percepção dos estímulos sensoriais externos e internos, também inicia construção do cinzel e do martelo2 que possibilitarão o esculpir cada uma de nossas percepções. Assim, como o processo de retirada do que excede a formação de seus significados.
Porém, a atenção não cultivada aproxima-se mais do processo do esculpir materiais dos quais suas bases são o gelo, a manteiga, a cera e a areia molhada. Materiais cujas obras não podem ser suficientemente percebidas se as condições que possibilitam sua percepção não estejam presentes. Como perceber uma escultura de gelo nas condições desérticas a que nossa atenção não cultivada pode em muito se aproximar? Condições como a temperatura podendo chegar a mais de 50 graus ou cujo solo é composto de areia escaldante?
A partir da aproximação da função da atenção a essa metáfora, não é assim que experimentamos a maioria de nossas percepções das realidades externas e internas a cada instante? Percepções que nos possibilitam ter apenas fragmentos de sensações, memórias, emoções, imagens, pensamentos etc. Tornando nossas experiências ainda mais efêmeras e transitórias.
Ainda considerando a metáfora da escultura de gelo sendo esculpida no deserto, a aridez do deserto também apresenta as condições ideais para a preservação de “artefatos humanos e fósseis”. Uma atenção não sustentada, além de construir significados a partir de poucos fragmentos de experiências percebidas ou de nenhum fragmento percebido, estará fadada à prisão da reprodução de um passado que já se foi. Assim, como será determinante no futuro que ainda não veio.
Quanto de nossa atenção, comportamentos e expectativas são determinados pelo personagem do arqueólogo em constante análise de “restos de materiais”? “Restos” que em grande parte serão hipóteses provisórias, porque poderão ser ou não ser. Podendo chegar ao ponto de manter-nos numa “realidade de ilusões”, já que essas hipóteses poderão prolongar-se indefinidamente. “Realidade de ilusões” em que poderemos nos identificar como que sendo indefinidamente desejáveis, estáveis, imutáveis… Nos identificar como sendo indefinidamente indesejáveis, instáveis, mutáveis… Identificarmos o outro e o mundo como sendo indefinidamente desejáveis, estáveis, imutáveis… Identificarmos o outro e o mundo como sendo indefinidamente indesejáveis, instáveis, mutáveis…
Fundamenta-se, portanto, outra das constatações dos Cientistas Cognitivos: nosso conhecimento da atenção se desenvolve basicamente a partir da desatenção. Já que na maioria das vezes focalizamos a atenção, quando percebemos que estamos desatentos.
A Atenção Plena na Ansiedade
Este é nosso destino, se não tivermos condições de parar e ver as experiências do corpo-mente com atenção? Especialmente, o conhecimento das sensações dos estados em que o corpo-mente experimenta hiperatividade; inquietação; impulsividade; irritabilidade; tensão excessiva; dificuldade de concentrar-se; sensação de “branco na mente”; dificuldade de controlar a preocupação; preocupação excessiva com circunstâncias corriqueiras e cotidianas; estado de apreensão; fraca habilidade de lidar com as emoções, especialmente, a emoção do medo; batimentos cardíacos irregulares; falta de ar; transpiração excessiva; dores de cabeça; náuseas; intestino irritado; prejuízo no funcionamento ocupacional; prejuízo no funcionamento social… Estados comuns na experiência da ansiedade (DSM-5, 2014).
Ressaltamos que não estamos nos referindo aqui aos Transtornos de Ansiedade. Cujos critérios de diagnóstico e cuidados deverão ser realizados por profissionais da saúde mental.
Sabemos que através da atenção podemos perceber e interpretar as sensações. Porém, uma atenção plena possibilita o controle da atenção. Controle, esse, determinante na redução de comportamentos impulsivos e automáticos, e de conflitos que surgem como resultado de interpretações insuficientes ou indevidas das sensações.
Se o leitor estiver atento, perceberá que utilizamos o conceito da atenção plena: condição fundamental à construção do conhecimento das realidades externa e interna que experimentamos. Porém, na atenção plena esse conhecimento não se reduz somente à percepção das experiências sensoriais do corpo-mente aqui e agora. É, também, a capacidade da consciência de permanecer mais tempo nas experiências, possibilitando o conhecimento de sua natureza.
Tendo como referência os estados experimentados na ansiedade, a atenção plena é a condição fundamental para o conhecimento das condições que estão desencadeando estes estados: O que, como, quem, quando, por que…?
A atenção plena possibilita a conscientização de que as sensações que experimentamos durante a ansiedade estão mudando a cada instante. Não sendo capaz de nos tornar impotentes diante de sua força, que normalmente identificamos como sendo capaz de nos dominar.
A atenção plena possibilita a conscientização de que eu não sou estes estados. É o corpo-mente que está experimentando alguns estados de ansiedade enquanto se manifestam. O que pode tornar nossa consciência capaz de experimentar certos estados de insatisfação, dificuldades e sofrimento sem reforçar reatividades aversivas.
Assim, como a atenção plena possibilita a conscientização de qual é o melhor caminho a ser tomado para remover estes estados de ansiedade.
Conclusão
Como a atenção plena nos estados de ansiedade pode ser um meio de trabalhar a ansiedade?
Retomando mais uma vez à nossa analogia do deserto. Para atravessarmos por “nossos desertos”, é necessário que nos equipemos com o conjunto de objetos necessários à travessia. Bem como, dos conhecimentos, habilidades e capacidades em atravessá-los. Aumentando, com isso, nossa capacidade de sobrevivência e adaptação enquanto atravessamos rumo a outros destinos. Mas com a devida orientação, pois são fundamentais os métodos e técnicas corretos. Como já desenvolvemos anteriormente, um desses métodos é a Meditação da Atenção Plena (Mindfulness). Cujas técnicas desenvolvem-se a partir de práticas focadas na concentração dos estímulos externos e internos, e no conhecimento das condições que desencadeiam os estados de ansiedade. Com o objetivo de nos reposicionar frente a ansiedade.
Notas
1 Nos referimos aqui à “Teoria do Holofote” (EYSENCK, 1992), segundo a qual a atenção visual se comporta como um facho de luz de um holofote em que quanto mais área alcançada, mais rarefeita é sua luz e mais abrangente será o círculo da atenção. E quanto menor o foco, mais concentrada será a luz, permitindo a maior sustentação da atenção, e a apreensão e detalhamento da percepção.
2 Nos referimos aqui à analogia apontada inicialmente por James (1890. In: GREEN,2007).
Ref. Bibliográficas
• EYSENCK, H.J. (1992). Four ways five factors are not basic. Personality and individual diferences, 13(6), p.667-673. https://hanseysenck.com/wp-content/uploads/2019/12/1992_eysenck_-_four_ways_five_factors_are_not_basic_personality.pdf
• GREEN, C.G. (2010). The Principles of Psychology, Willian James (1890). Chapter XI: Attention. Toronto (ON): An internet resource developed by Christopher D. Green – York University. https://psychclassics.yorku.ca/James/Principles/prin11.htm
• Manual diagnóstico de transtornos mentais: DSM-5 (2014). Porto Alegre: Artmed: 222-223.