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Psicologia das Florestas: Saúde Mental na Perspectiva Kanhgág

Psicologia das Florestas

Psicologia das Florestas: Saúde Mental na Perspectiva Kanhgág
Forest Psychology: Mental Health in Kanhgág Perspective

Rejane Paféj Kanhgág1

(Tradução do Coletivo de Tradutores Berkeley-Brasil*)

Os anciões, nossos kofá, têm uma visão simples e precisa sobre o que está acontecendo com a humanidade, sobre o motivo da repetição de tanta violência, brutalidade, indiferença mútua e ausência de fraternidade. Os anciões dizem que os seres humanos se distanciaram de seus próprios corações!

A civilização seguiu por um caminho equivocado e sem coração. O caminho do ego, competição e hierarquia em vez da compaixão, levando as pessoas a se distanciarem cada vez mais de seus próprios corações e desconectar da natureza. Esta separação fez as pessoas se esquecerem de quem, essencialmente, elas são.

Quando olhamos para uma floresta, muitas vezes vemos apenas o que está na superfície: troncos, folhas, galhos entrelaçados. No entanto, por trás dessa aparente simplicidade há um mundo complexo e interconectado que merece nossa atenção.

O colapso climático está aqui, estamos literalmente lutando por nossas vidas, e a pandemia nos mostrou a instabilidade total em que estamos vivendo. As populações tradicionais são essenciais para conter as mudanças climáticas, e a demarcação de terras é a saída para a crise climática.

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Os povos indígenas representam menos de 1% da população brasileira e 5% da população mundial, mas são responsáveis ​​pela preservação de 80% da biodiversidade presente em seus territórios.

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  1. Rejane Paféj Kanhgág, neta de Domingas, filha de Maria Kairu, mãe de Kafág e filha da floresta. Psicóloga; Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutoranda em Antropologia pela UFRGS. Moradora da Aldeia Indígena Sede Nonoai/RS.

* Derek Allen, Luiza Bastos Lages, Mônica Carvalho Gimenes, Gabriel Lesser, Ana Claudia Lopes, Isaac McQuinn & Liam G. Seeley.

Nossos corpos se tornam instrumentos de luta e resistência. Ao redor do fogo, vivenciamos saúde e educação. Ao redor do fogo, lembramos do nosso território umbilical, onde tudo está conectado: corpo, mente, território e espiritualidade. A floresta é nosso corpo; nosso corpo é território.

Nossa saúde depende da saúde das florestas. Ouvimos as vozes dos jagrês (guias da floresta). Não somos da floresta, somos a floresta, pedindo ajuda. Quando nossos filhos nascem, enterramos seus umbigos na porta da casa para que os espíritos deles não sejam capturados pelos vênh-kuprîg kórég (espíritos maléficos).

O vínculo com o território é tão forte que quando uma pessoa morre, ela precisa retornar para sua terra de origem; porque território, para nós, é onde nossos umbigos são enterrados. Quebrar esse princípio pode causar sofrimento patológico, como dizem os não indígenas (CARVALHO, 2020).

O aquecimento global vai nos matar, desastres “naturais” não são naturais. Estamos ouvindo os gritos de socorro da mãe sagrada, nossa mãe nãn gâ (mãe terra) está ficando mais doente a cada dia. Nossos territórios sofrem os impactos direta e indiretamente: nossos alimentos tradicionais submersos em lama, minério e agrotóxicos; nossos animais morrendo em incêndios e de fome; e os espíritos da floresta, nossos jagrês, segurando o céu para que não caia sobre nossas cabeças.

Alguns impactos dessa instabilidade climática já podem ser sentidos em todo o Brasil. O Sul e parte do Nordeste sofrem com chuvas intensas que deixam mortos e desabrigados. No Sudeste, secas históricas cortam o abastecimento de água em centenas de municípios. No Norte, há enchentes históricas na Bacia Amazônica, e a transformação da vegetação natural da floresta pode elevar as temperaturas a níveis fatais.

Desconsiderar os biomas e os direitos indígenas é deixar os povos indígenas à mercê de governos nacionais como o de Jair Bolsonaro, que implementou uma agenda anti-indígena no Brasil e nos atacou constantemente na mídia (índios com bananas; índios comem capim; índios querem ser iguais a nós — essas foram algumas das coisas sem sentido que o ex-presidente disse).

Nós, povos indígenas, somos os verdadeiros guardiões das florestas. A proteção e preservação dos biomas não pode esperar mais. Isso é urgente, é agora. Sem água potável, sem ar, não podemos viver. Nossa saúde depende da saúde das florestas, ouvimos as vozes dos jagrês (guias da floresta) pedindo misericórdia. A cada raiz, a cada rio que seca, morremos um pouco. Como povos da floresta, sentimos a natureza em nossos corpos.

“O território é muito importante para os Kanhgág (como nós Kaingang nos chamamos). A territorialidade é composta de terra, parentes e de todo o cosmos a fim de produzir saúde.” (CARVALHO, 2023, p. 223).

Quando Davi Kopenawa fala da queda do céu e do amor dos brancos pelas mercadorias (KOPENAWA & ALBERT, 2015); ele, também, está denunciando as consequências da colonização para os modos de vida dos povos indígenas e tradicionais, e para o próprio mundo dos fóg (povos não indígenas), que ameaça entrar em colapso ao enfrentar crises sobrepostas: política, econômica, tecnológica, epistemológica, ecológica e imaginativa.

As preocupações dos povos indígenas demandam necessidades como a formação de profissionais de saúde mental capacitados para discutir os problemas do sofrimento nas aldeias indígenas junto aos líderes espirituais e à comunidade como um todo. Já que é essencial levar em consideração os territórios e os modos de viver e ser de cada etnia. Bem como, nossas riquezas culturais, ainda muito pouco reconhecidas pelos profissionais da floresta de pedra.

Eles acabam perpetuando a invisibilidade dos modos indígenas de ser e viver na cidade. Estar em contato com a natureza é sinônimo de saúde; assim, como tomar um banho de rio constitui um momento terapêutico para nosso corpo-território. Na floresta de pedras adoecemos mais.

Como mulher indígena, corpo-ciência, escrevo nossa história: agora contada e escrita de acordo com nossos conhecimentos, abrangendo temas de saúde e educação, e trazendo a importância de nossos modos de ser e viver para a saúde mental e espiritual e do território-corpo.

Também, trago para o espaço acadêmico problemas importantes da cosmopercepção Kanhgág, como uma forma de lançar luz sobre mundos, saberes e modos de existir pouco percebidos nesse espaço, e ameaçados pela lógica colonial. Promovendo, assim, uma ruptura político-ético-estético-cognitiva no cotidiano acadêmico, e buscando articular relações de apoio às lutas Kanhgág por territórios ancestrais em processo de retomada.

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A Psicologia da Floresta envolve todos esses aspectos que são muito mais amplos: corpo, mente, espiritualidade, conhecimentos ancestrais e modos indígenas de ser e viver — tudo está conectado.

Ao escrever nossa história, meu objetivo é dar visibilidade ao modo de vida; especialmente, ao “bem viver” que se entrelaça entre corpo-território. Falo da Psicologia da Floresta como uma continuidade sócio-histórica da existência desses coletivos, baseada principalmente na linhagem do modo de vida jykrê (pensamento Kanhgág) do qual faço parte desde antes de nascer, buscando disseminar e construir uma sociedade justa com os povos indígenas.

Quando uma criança Kanhgág vai aprender a arte da cestaria, antes de começar uma complexa tecelagem do bambu taquara ou da videira que se tornará uma cesta, ela deve entrar na floresta, procurar uma sukrîg (aranha), tocar sua teia suavemente com a mão, e pedir permissão para usar seu poder de tecelagem.

Com esse gesto, elas reconhecem a habilidade do sukrîg e o lugar de cada ser na teia de relações tecidas, na qual eles se entrelaçam, como uma grande cesta, entre os seres que coabitam o mundo. Nossa relação com a floresta é de extenso parentesco — cada animal, cada folha, o rio que corre é nosso parente visível e invisível. Ao redor do fogo, nossos kofás (anciões sábios) transmitem histórias de especificidades culturais do conhecimento transmitido por seus ancestrais em nossa tradição oral (DOMINGOS, 2016).

A vida e a morte para os Kanhgág estão profundamente ligadas à araucária. É sob esta árvore que nosso umbigo é plantado, e desse material o Konkéi (copo de cortiça) é feito; no qual Kiki (uma bebida fermentada de milho) é servido durante o Kikikói (o ritual dos mortos).

No Kikikói — um ritual perigoso, segundo os relatos dos tî sî (os mais velhos), em tempos em que a aldeia, ou várias aldeias, sofriam de muitas doenças, epidemias e mortes frequentes — o kiki era realizado, em que a bebida era consumida, e os mortos/espíritos eram invocados para purificar a aldeia e ajudar os espíritos que pudessem estar perdidos e corrompendo a aldeia a continuar para o mundo dos mortos.

Seguindo os entrelaçamentos do ritual kiki há um rito para se comunicar com os mortos e oferecer presentes. Ao longo do caminho para o cemitério, raízes, folhas, frutas e flores são coletadas. Canções ancestrais, danças e orações são executadas ao redor do fogo, e todos são servidos com kiki, uma bebida que representa a morte, e torna os vivos tão fortes quanto a morte.

Depois que todos bebem da bebida que representa a alma do morto, o konkéi retorna com a borda virada para baixo; encerrando assim, mais um culto aos mortos. Kujàs (médicos espirituais), Kofás (anciões sábios) e parteiras, os líderes espirituais Kanhgág, lideram o caminho e mantêm as duas metades, Kamé e Kairu, unidas (CARVALHO, 2020). O vínculo com a terra e o território é o que promove a saúde no povo Kanhgág.

O povo Kanhgág desenvolve suas próprias atividades culturais desde o início de sua história, utilizando diversos meios, matérias-primas naturais e criatividade para fazer nossa arte. Desde a barriga da nossa mãe, somos ensinados a seguir os preceitos da mãe terra. Quando aprendemos a tecer, entramos na floresta e pedimos permissão ao dono daquele espaço. Quando tecemos estamos em contato com os dois mundos, visível e invisível. Nosso contato com a floresta é umbilical. O bambu taquara é um dos elementos sagrados que, ao ser retirado do mato, simboliza o respeito entre os seres da floresta e os povos indígenas.

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Nosso sustento é feito da taquara quando praticamos a cestaria, especialmente a peneira (cesto de peneira trançado), que não é apenas um objeto de arte, mas também espiritual. Nossas crianças são livres dentro do território para brincar, nadar, se constituir como sujeitos. Às vezes, uma criança pode se assustar e cair na água, então vamos até o rio e pedimos permissão à Mãe Água, e com muito respeito colocamos a peneira na água e pedimos: “goj inh my inh kósin pére kotîg” (Mãe Água, devolva meu filho), “kónêg ta ni ver” (ele ainda é pequeno).

Caso contrário, a criança fica doente: nos casos mais simples, a criança pode ter dificuldades de fala; em casos mais graves, pode levar à morte. Além disso, essa atividade envolve toda a família no seu dia a dia, desde a entrada na floresta com um pedido de permissão, as canções no caminho para a floresta, as histórias contadas ao redor do fogo junto com a confecção de artesanatos, bem como, a confecção de alimentos para compartilhar.

Desta forma, os mais novos aprendem pela observação, seguindo os kofá (sábios mais velhos) e aprendendo o valor de cada arte, seus desenhos gráficos, cores, seu significado e história na cultura Kanhgág. Estas experiências vividas são essenciais para nossa constituição como sujeito coletivo.

Em nossa concepção, não há divisão entre as pessoas em ambientes comunitários, especialmente as crianças. Aqui, compartilho a relação que temos com nossas crianças porque acreditamos que elas devem participar dos mesmos ambientes em que nos movemos, pois é por meio dessas experiências que elas adquirem conhecimento no dia a dia.

Nossos filhos vivem livremente e é dessa forma que eles aprendem, desde explorar lugares por conta própria na comunidade até aprender a manusear ferramentas como facões e varas de pescar. Isto representa a adequação do nosso mundo e das nossas experiências. Não forçamos as crianças a fazer atividades que elas não querem fazer.

Podemos vê-las participando de reuniões comunitárias, compartilhando chá de chimarrão com os mais velhos, e participando de festivais e eventos comunitários. Esses espaços, também, são importantes para a socialização, e a interação entre todas as gerações faz parte do processo de transmissão de conhecimento na educação Kanhgág.

Uma forma de enfrentar a aceleração dos processos de colonialidade do conhecimento é por meio do cultivo de um modo de atenção aberto à interação entre os seres existentes e os mundos que emergem desses encontros (DOOREN et al. 2016; TSING, 2019), e por meio de uma postura de cuidado com o conhecimento assim produzido (PUIG DE LA BELLACASA, 2012) — tecendo uma política de relação entre múltiplos mundos (HARAWAY, 2016).

Quando uma criança Kanhgág tece bambu taquara para fazer uma cesta, ela reconhece que é o Sukrîg e seu espírito que confere a ela o conhecimento da tecelagem. Quando o umbigo de uma pessoa Kanhgág é plantado ao lado da árvore araucária, a aldeia reconhece que sua vida está profundamente entrelaçada com um mundo de múltiplos agentes além do humano.

Esta forma de relação com os seres revela uma atenção aos muitos mundos existentes e um vínculo com o território que é radicalmente diferente daqueles que constituem o conhecimento supostamente universal da colonialidade.

O vínculo com o território é tão forte que quando uma pessoa morre, ela precisa retornar para sua terra de origem, e, portanto, território para nós é onde nossos umbigos estão enterrados” (CARVALHO, 2020).

Percebemos nestas abordagens uma articulação potente tanto para observar os encontros entre saberes e produzir intervenções capazes de provocar rupturas na colonialidade do conhecimento acadêmico ao vivenciar encontros de mundos tão distintos, quanto para acompanhar as relações que derivam do encontro; na lógica do contágio da Psicologia das Florestas, a saúde mental segundo os saberes ancestrais.

A luta dos povos indígenas é comparável à luta de uma abelha: somos apenas um terço da população, mas quando somos cutucados, somos milhões para defender nossos territórios sagrados.

Mesmo assim, o preconceito alimenta a expansão da sociedade dominante e do capitalismo colonial, que é a principal causa das doenças espirituais do povo Kanhgág e causa discriminação étnica e a hiperexploração do trabalho manual.

Estamos no século XXI e ainda somos vistos como animais, sem alma, como alcoólatras e canalhas vagabundos; somos violentados das mais diversas formas desde sempre, como se os modos de ser e viver indígenas fossem um retrocesso para a sociedade dominante, que nega contato e oportunidade aos povos indígenas, e inviabiliza o modo ancestral de ser e viver indígena.

Apesar do negacionismo imposto aos Povos Indígenas, estamos reconquistando espaços de poder, aqueles que foram roubados e aniquilados. Estamos em vários lugares, reexistindo — como profissionais descolonizando corpos; como movimento reivindicando espaços de poder; como universidade, colorindo com as tinturas dos frutos do jenipapo e urucum, que trazem saberes ancestrais; como artesãos, compartilhando o mundo visível e não visível dos nossos jagrês (guias da floresta). Estamos, com a cestaria, adornos e medicinas tradicionais, superando um espaço de invisibilidade — somos muitos, somos originários, somos 305 povos, com línguas e costumes específicos; somos como o pequeno sabiá que, com seu bico pequeno, junta água para tentar apagar os incêndios na floresta.

Começarei, então, a descrever alguns rituais realizados na cultura Kanhgág, para melhorar a compreensão da importância de levar em conta nossas especificidades culturais; bem como, a centralidade de nossa medicina tradicional na produção de saúde mental na perspectiva indígena Kangág. Alertaria que, após um ritual com o kujá, devemos seguir uma dieta que inclua apenas alimentos tradicionais; fogo, fumaça, cinza e água são de extrema importância na culinária Kanhgág, assim como peixe assado dentro do broto de bambu (krakufãr kénpu), bolo na cinza (êmi). E, também, para uma Psicologia Kanhgág descolonizadora, uma psicologia que é nossa, construída dentro dos espaços e modos de ser e viver indígenas. Este território é indígena, pois onde quer que haja um indígena é território indígena.

A união entre os povos é a única chance que temos de salvar vidas. Nós Povos Indígenas temos ecoado por mil anos as vozes dos territórios, as vozes dos espíritos da floresta, convocamos todos os povos a salvar e preservar a saúde das florestas e a nossa saúde.

Estamos sendo assassinados, desprezados e enganados. Eles roubaram nossos territórios, estão matando nosso kofá, e roubam nossas crianças; ainda assim, estamos lutando por toda a vida, animais, folhas, frutas, raízes, até mesmo pela vida de nossos agressores.

Resistimos, lutamos e sobrevivemos, pois lutamos por algo maior que os bens materiais, lutamos pela vida. Depois de alguns episódios catastróficos, o olhar do mundo retorna às palavras dos povos nativos e reconhece que sempre tivemos razão. Não podemos nos acomodar — o chamado continua, e unir-se aos Povos Indígenas é a única alternativa para que o céu não caia sobre nossas cabeças, para que não comamos lama, minério e veneno; a mãe terra anseia por esse dia, onde as cores e os amores unem forças pelo planeta, por nossos filhos e nossos anciões.

Conhecida como PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 48, ou PEC da Morte, o ‘marco temporal’ é a proposta que altera o artigo 231 da Constituição Federal fixando o prazo para ocupação de terras por indígenas na data de 5 de outubro de 1998. Este marco temporal é uma proposta antiindígena e ruralista, pois viola o direito originário dos povos indígenas ao nosso território ancestral, reconhecido na Constituição de 1988 que a PEC 48 tenta alterar.

Além disso, a proposta ignora a violência e a perseguição que os povos indígenas sofreram (e ainda sofrem) por mais de 520 anos, principalmente durante a ditadura militar, que impediu muitos dos nossos povos de permanecerem em seus territórios em 1988. Embora pensar em território indígena seja pensar em práticas de plantio e colheita, muitas etnias migraram atrás dos pássaros em busca de frutos, folhas e raízes, fugindo de grandes fazendeiros para salvar suas vidas; ser indígena é não ter porteira, não ter fronteiras ou limites; parente é parente não importa onde.

Estamos ameaçados desde sempre — por grileiros (pessoas que roubam terras por meio de documentos legais falsos), fazendeiros, agronegócios, entre tantos outros destruidores — e a vida dos povos indígenas estará ainda mais ameaçada se a PEC da Morte for aprovada, facilitando a entrada em territórios e incentivando invasões e violências. Isso se deve ao fato de que o marco temporal impacta todos os territórios indígenas no Brasil, independentemente de já terem sido demarcados ou não, assim como vemos tantas lideranças sendo mortas, crianças sendo assassinadas e violentadas, líderes espirituais queimados vivos em suas casas de reza e terras indígenas sendo brutalmente dizimadas.

Além disso, as terras indígenas são as áreas com maior biodiversidade e com a vegetação mais bem preservada, pois são protegidas e geridas pelos povos indígenas. Aprovar a PEC 48 significa impedir que os verdadeiros protetores dos biomas, os Povos Indígenas, cuidem e preservem o meio ambiente. A saúde dos Povos Indígenas é a saúde dos territórios: somos os rios que correm, somos as raízes que brotam, somos os animais que rugem.

Ao ecoar estas vozes, alertamos para o fim do mundo, mas, também, apontamos para um futuro possível: a demarcação de territórios, áreas ocupadas por Povos Indígenas é, de fato, a resposta para enfrentar a crise ambiental. Assim, o paradoxo aqui apresentado é o da mistura de seres visíveis e não visíveis — entre aqueles que não querem ouvir e aqueles outros que contam suas histórias ao redor da fogueira, que dançam na chuva e pedem permissão para retirar uma fruta da floresta, e que continuam adiando o fim do mundo, impedindo que o céu caia sobre nossas cabeças (KRENAK, 2019).

Os fóg têm um desejo doentio por bens materiais. Ansiamos pelo dia em que eles possam ouvir outras palavras além daquelas associadas a esses bens — se ao menos pudessem ouvir o dueto das águas que se encontram nos rios, o som do joão-de-barro, do joão-de-barro-vermelho que canta e constrói sua casa, da cigarra kin que chora e ri ao mesmo tempo em seu canto, sabendo que no fim do verão precisarão escolher uma bela árvore onde seu corpo descansará, cantos que encantam vidas que lutam por seus modos de ser e viver.

Se os fóg pudessem ouvir e viver pela própria vida, não iriam querer comer tanto da floresta. Em uma forma especial de escrita crítica construtiva, reforço que embora haja uma abundância de antenas de internet e rádios em suas selvas de pedra, os fóg os usam para ouvir apenas a si mesmos. Ao trazer esse pensamento, quero dizer que temo pela sobrevivência dos não indígenas, dado que nós, os habitantes originários da terra, considerados “animais”, sabemos como sobreviver a esses impactos, resistindo como temos feito por mais de 524 anos — o que quer dizer um bom tempo — enquanto infelizmente os não indígenas comem argila enlatada e bebem veneno engarrafado.

Dizem que há muita terra para poucos ‘índios’, mas na realidade são os poucos ‘índios’ protegendo a vida para que o mundo inteiro sobreviva — somos perseguidos, somos mortos, e mesmo mortos estamos lutando pela vida, daqueles que virão depois de nós, semeando sementes. Nem o cara mais poderoso do mundo sobreviverá na floresta comendo dinheiro; só a natureza, as florestas, têm o poder da vida e da morte.

O impacto cultural do modelo colonial europeu nos remete a um passado obscuro que trouxe à tona violências historicamente inumeráveis, ao extermínio de línguas, povos e ao mito de que os povos indígenas constituem uma ameaça. Ao relembrar esse passado cruel, não posso deixar de incluir a chamada ‘pacificação’ levada a cabo pelos jesuítas, para quem adorar um Deus significaria a salvação dos territórios, já que para eles ‘os índios são animais sem alma’.

Nossos kujá (médicos espirituais) foram comparados a bruxas e caçados até a morte. A ciência não reconheceu nossa língua materna, sendo assim aniquilada em muitas etnias. Um passado de extermínio demonstra e reafirma a reexistência de especificidades culturais. Apesar da desconstrução de nossas ‘instituições’ — incluindo os sistemas complexos de formação de novos especialistas, formas de organização social, sistemas de casamento, práticas de cuidado do corpo, concepções cosmológicas, regras de relações familiares e outras instituições historicamente desconstruídas ou aniquiladas por imposições externas — as práticas de cuidado da saúde, do corpo-território, da mente e da espiritualidade especificamente transmitidas pelos ancestrais ainda existem e resistem nas tradições indígenas, sendo o pilar para a sobrevivência do povo Kanhgág.

A Psicologia da Floresta traz à tona uma reflexão de sua base em raízes ancestrais onde a cura está em nossos corpos-territórios, com a luz do sol e a luz da lua, cure-se. Cure-se com a melodia dos rios e da cachoeira, com o vai e vem do mar e com o leve bater de asas dos pássaros.

Cure-se, com o óleo de manjericão, erva-doce e folhas de hortelã. Alecrim, camomila e lavanda são ingredientes deliciosos para seu banho. Um toque de canela, mel e grãos de cacau vão te abraçar. Coloque amor no chá, sem açúcar, e tome um gole enquanto observa as estrelas. Cure-se com os beijos do vento e os abraços da chuva.

Compartilhe pensamentos e sonhos ruins com a pedra, um parente, para que eles permaneçam estagnados e para que o vento não ouça. Torne-se forte, com os pés descalços sobre a mãe terra e tudo o que ela produz. Não somos parte da natureza, somos a própria natureza, somos nosso próprio remédio; ouça a intuição e seja inteligente.

A Psicologia da Floresta é Psicologia muito antes da Psicologia propriamente dita se consolidar. No fim das contas, há a necessidade de integrar a Psicologia ocidental com o conhecimento ancestral. Antes da intervenção do fóg, o sofrimento mental já era trabalhado e tratado por meio da espiritualidade indígena em nossas comunidades, permitindo que os benefícios dessas práticas sejam notados hoje e, portanto, essas dimensões não devem ser separadas ou ignoradas.

(Tradução livre – ESABE Espaço de Saberes)

Referências

  • CARVALHO, R.N.de. (2020). Kanhgang Êg My Há: Para uma Psicologia Kaingang. Trabalho de conclusão de graduação de curso. Porto Alegre: Instituto de Psicologia – UFRGS.

https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/212727/001116972.pdf?sequence=1

  • CARVALHO, R.N., ROSADO, R.M. & SILVA, R.A.N. (2023) Mulheres Semente, ÎNH KÓSIN VY ÎNH MRÉ KONÎN JÉ: Experiências das mães indígenas estudantes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Espaço Ameríndio, 17(02), 220–239. https://seer.ufrgs.br/index.php/EspacoAmerindio/article/view/132996/89603
  • DOMINGOS, A. (2016). O bem viver Kaingang: Perspectivas de um modo de vida para construção de políticas sociais com os coletivos indígenas. (Apresentação de Trabalho/Conferência ou palestra).
  • DOOREN, T., KIRKSEY, E. & MUNSTER, U. (2016). Estudos multiespécies: Cultivando artes de atentividade. Campinas: Incertezas, 3(6), 39-66. ClimaCom [online]. https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/estudos-multiespecies-cultivando-artes-de-atentividade/
  • HARAWAY, D. (2016). Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham (NC): Duke University Press.
  • KANGÁG, R.P. (2024). Forest Psychology: Mental Health in Kanhgág Perspective [Psicologia das Florestas: Saúde Mental na Perspectiva Kanhgág]. Revista Pihhy nov2024. Berkeley: Center for Latin America & Caribbean Studies – UC Berkeley. revistapihhy-forestpsychology-nov2024.pdf

https://clacs.berkeley.edu/sites/default/files/revistapihhy-forestpsychology-nov2024.pdf

  • KOPENAWA, D. & ALBERT, B. (2015). A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.
  • KRENAK, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo (Nova edição). São Paulo: Editora Companhia das Letras.
  • PUIG DE LA BELLACASA, M. (2012). “‘Nothing Comes Without Its World’: Thinking with Care.” The Sociological Review, 60(2), 197–216. Lancaster (GB): Lancaster University.

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