Arthur Shaker
Este texto tem como objetivo abrir um olhar introdutório para um tema bastante vasto e complexo: servir de inspiração para aqueles que desejam adentrar na riqueza cognitiva e a prática da medicina tradicional chinesa.
Para a compreensão da profundidade e eficácia de uma medicina tradicional como a chinesa, um útil ponto de partida é entendermos a visão mais ampla em que esta medicina se fundamenta, e na qual suas práticas de cura se desenvolvem.
O primeiro aspecto é a percepção de que esta medicina tem origem e fundamento numa civilização tradicional. Termo que designa os povos em que toda sua visão de mundo e suas práticas no corpo e na mente estão fundadas em bases espirituais. Significa que sua existência está conectada com o que transcende a natureza humana. Sem compreender esta conexão é impossível entendermos estas civilizações e suas medicinas. Sem isto, elas se tornam sem sentido.
A civilização chinesa entende ser sua origem e a de todo universo como supra-humanas, e é isto que significa Tradição: cada aspecto da vida terrestre tem nexos celestes, expressos e mantidos por sua tradição.
Seus fundamentos podem ser encontrados no livro Nei Ching, atribuído
ao Imperador Huang-Ti, no 3º milênio a.C. O ponto de partida é a realidade, atribuída ao primordial do Absoluto, o Misterioso Princípio, o Tao Absoluto, o Tao sem Nome: “ O Tao que pode ser expresso não é o Tao Absoluto. O nome que pode ser revelado não é o Nome Absoluto. Sem Nome é o princípio de Céu e Terra” 1 .
A partir do Tao sem Nome, é manifesto o Tao com Nome: “Com Nome é a Mãe de todas as coisas” 2. A partir desse princípio-raiz de todo universo – a Mãe dos dez mil seres, a Unidade – , temos a energia cósmica primordial, Qi. E sua divisão nas duas forças polarizadas, complementares e cooperativas, Yang-Yin; base de toda a realidade cósmica e de todos os seres.
Qi, o princípio da energia cósmica primordial, é a base de todas as dimensões corporais e mentais. Portanto, podemos dizer que os corpos, mais do que conterem energias, são energias manifestas como matéria densa viva.
Esta energia Qi flui pelo corpo através de canais (os meridianos) em cinco níveis de fluxo: dentro dos ossos (o mais profundo), músculos; vasos sanguíneos e linfáticos; região subcutânea (onde todos os canais/meridianos são a base da medicina chinesa) e a superfície da pele (contínuo com a força vibratória que envolve todos os seres vivos: “Assim, o funcionamento adequado do organismo humano estaria ligado à perfeita captação e o fluxo da energia Qi através do corpo “ 3. Ou seja, no equilíbrio Yin-Yang.
O organismo seria um complexo metabolizador, que se renova de energia vital através da assimilação dos alimentos, da respiração e das vibrações captadas pelos sentidos. Reencontramos certas semelhanças com a concepção hindu da energia vital prana, que vem do oxigênio, da água e dos alimentos.
Assim, na cosmogênese chinesa, no princípio havia a unidade Qi. Cuja polarização e entrelaçamentos dos princípios opostos e complementares Yin-Yang gera os múltiplos e variados seres manifestos.
Qi é a origem e a essência de toda realidade existencial, fluindo por canais e formando o corpo sutil energético, que permeia o corpo físico, denso, material. Nesta energia, teríamos: (1) a Energia Ancestral ou Essência, Jin, recebida na concepção e proveniente de ancestrais; (2) a Energia Respiratória, proveniente do ar, através da respiração, da qual retiramos o oxigênio do meio para o corpo físico e o Qi para o corpo sutil-energético; (3) a Energia Alimentar, proveniente dos alimentos, cujos nutrientes vão para as células, e o Qi dos alimentos para o sistema energético; (4) a Energia Cósmica, proveniente do meio ambiente onde vivemos; e (5) a Energia Psicoafetiva, proveniente de nossas relações psicosocioafetivas 4 .
O fluxo energético se dá através de:
- Doze pares de meridianos principais, bilaterais e simétricos, cada qual com sua função e associados a doze órgãos. Entretanto, o nome do órgão não se refere apenas à sua substância material, mas como órgãos-funções com manifestações energéticas e psicossomáticas. Por esses doze meridianos/canais flui a energia nutridora (energia respiratória e alimentar);
- Dois meridianos primordiais (extras), ímpares e passando verticalmente pelo centro do corpo, com a função de reservatório de energia e regulador do fluxo energético dos outros doze meridianos.
Cada meridiano se conecta com um meridiano do qual recebe energia, e com outro a quem transmite. E possui hora específica de máxima atuação.
Encontramos, junto aos princípios Yin-Yang, a noção de cinco movimentos interdependentes, relacionados aos cinco elementos: madeira – movimento vivo, alimentador do fogo; fogo–movimento, produtor das cinzas que nutrem a terra; terra – transformação e nutridor do metal; metal – purificação e originador das minas de água, e água – gerador de flexibilidade e nutridor da madeira.
QUADRO DOS ELEMENTOS
Baseado em LAO TSE. Tao Te Qing: O Livro do Sentido e da Vida, 1977.
QUADRO MERIDIANOS:
Baseado em LANGRE, J. Do-In: Técnica oriental de auto-massagem, 1977.
Interiormente, os canais se comunicam com os órgãos e vísceras, e externamente com a superfície do corpo. Os doze meridianos recebem o nome do órgão e vísceras aos quais regulam.
Meridiano do Pulmão – Meridiano do Intestino Grosso (Metal)
Meridiano do Estomago – Meridiano do Baço-Pâncreas (Terra)
Meridiano do Coração – Meridiano do Intestino Delgado (Fogo)
Meridiano da Bexiga – Meridiano dos Rins (Água)
Meridiano da Circulação-Sexo – Meridiano do Triplo Aquecedor (Fogo)
Meridiano da Vesícula Biliar – Meridiano do Fígado (Madeira)
Meridiano do Pulmão: Yin, bilateral, com muito sangue, alimenta de oxigênio o sangue. Rege o pulmão e todo aparelho respiratório. Hora máxima de atuação: 3:00 às 5:00h.
Meridiano do Intestino Grosso: Yang, bilateral, com muito sangue e energia. Rege o intestino Grosso e suas funções de absorção de líquidos, e eliminação de resíduos grossos. Hora máxima de atuação: 5:00 às 7:00h.
Meridiano do Estômago: Yang, bilateral, com muito sangue e energia. Elabora a energia através dos alimentos. Rege o duodeno, o estômago e as funções digestivas. Hora máxima de atuação: 7:00 às 9:ooh.
Meridiano do Baço-Pâncreas: Yin, bilateral, mais energia que sangue. Rege o baço e o pâncreas. Regula as reservas de glicogênio e o sistema imunológico. Hora máxima de atuação: 9:00 às 11:00.
Meridiano do Coração: Yin, bilateral, mais energia que sangue. Rege o coração, em seus aspectos físicos e psíquicos. Hora máxima de atuação: 11:00 às 13:00h.
Meridiano do Intestino Delgado: Yang, bilateral, com mais sangue que energia. Regula o intestino delgado; a função do duodeno pertence ao estômago. Separa os líquidos dos sólidos, facilitando a assimilação dos alimentos no processo digestivo. Hora máxima de atuação: 1300 às 15:00h.
Meridiano da Bexiga: Yang, bilateral, com mais sangue que energia. Regula a bexiga e, em conexão com os rins, em sua função de equilíbrio e eliminação renal. Hora máxima de atuação: 15:00 às 17:00h.
Meridiano dos Rins: Yin, bilateral, com mais energia que sangue. Rege os rins, atuando sobre a glândula suprarrenal, com ação na sexualidade e vontade. Hora máxima de atuação: 17:00 às 19:00h.
Meridiano da Circulação-Sexo (Mestre do Coração ou Pericárdio): Yin, bilateral, com mais sangue que energia. Não representa um órgão determinado. Está diretamente relacionado ao meridiano do Coração em funções comuns. Rege os fluidos corporais, o controle das atividades hormonais (endócrinas) e imunológicas, e está relacionado com a sexualidade e função reprodutora. Hora máxima de atuação: 19:00 às 21:00h.
Meridiano do Triplo Aquecedor: Yang, bilateral, com mais sangue que energia. Também, não representa um órgão determinado. Possui três funções: digestiva (reservatório e transformação alimentar); cardiorrespiratória (circulação do sangue rico em oxigênio) e geniturinária (funções eliminatórias e reprodutivas). Hora máxima de atuação: 21:00 às 23:00h.
Meridiano da Vesícula Biliar: Yang, bilateral, com mais sangue que energia. Rege a vesícula e sua função biliar. Hora máxima: 23 à 1h da madrugada.
Meridiano do Fígado: Yin, bilateral, com mais sangue que energia. Rege as funções hepáticas (desintoxicação, filtração do sangue, especialmente com aquelas relacionadas com a acuidade visual, muscular, metabólica e a sexualidade. Hora máxima: 01:00 às 3:00h.
Os dois meridianos extras ou primordiais – primeiros a surgir em nossa vida embrionária, funcionando como reserva de energia para os canais principais de acordo com as necessidades de cada um – formam a Pequena Circulação da Energia. Por onde fluem a energia ancestral e a energia captada pelos três centros aquecedores. Estes são o Meridiano do Governo ou Sistema Nervoso, e o Meridiano do Vaso da Concepção. Caracterizados como
Meridiano do Governo ou Sistema Nervoso: embora sem polaridade, tem predomínio do Yang, unilateral (posição dorsal por onde passam a maior parte dos meridianos Yang), com funções genito-urinárias, digestivas e respiratórias. Não possuindo horário de energia máxima.
Meridiano do Vaso Concepção: embora sem polaridade, tem predomínio do Yin em sua posição ventral, por onde passam a maior parte dos meridianos Yin. Unilateral, com funções genitourinárias, digestivas e respiratórias. Não possui horário de energia máxima.
Aplicações práticas:
Os diagnósticos baseiam-se no exame das cores da pele da face, entrevistas, exame da língua e do pulso (CANÇADO, 1976, p.13-19; TABOSA, Unifesp, 2010). A noção de saúde e doença tem a ver com a proporção harmônica das polaridades na ação sobre as funções orgânicas. E no tratar dos desequilíbrios e bloqueios da força vital encontramos um conjunto de terapias para os processos energéticos (tonificação quando há deficiência de energia; e sedação quando há excesso). Estes dois últimos sendo o campo de aplicação da acupuntura, da moxabustão e das práticas de massagem Do-in e Tui-ná, como ativadores da circulação da energia. Também, podemos incluir também as práticas corporais do Tai Chi Chuan e do Chi Kung no desenvolvimento da energia vital.
Segundo Jacques-André Lavier (1983), “a medicina tradicional dos antigos Chineses possui diferentes meios à disposição para lutar contra a doença; que precisamente, segundo os textos clássicos são:
- a abertura do consciente;
- a alimentação da estrutura;
- a prescrição de medicamentos;
- a aplicação da acupuntura;
- a distinção entre o essencial e o acessório nos diferentes órgãos (cirurgia)”
… A abertura do consciente é para a Tradição, a terapêutica essencial em todas as acepções do termo; pois, o comportamento do cocheiro é determinante para o bom funcionamento da carruagem. Quando a carruagem tem uma avaria, o cocheiro pode bem consertar por si mesmo; se o cavalo estiver nervoso, fazendo desvios o cocheiro o acalmará e o reconduzirá ao caminho correto. Entretanto, nesta época em que vivemos a humanidade está fortemente afastada do Céu. À medida que ela se aproxima do solo, chão e terra no decurso de sua queda, o responsável por esse fato é o cocheiro. Que por estar um tanto sonolento, ou completamente adormecido, deixa a condução da carruagem se dar pelo cavalo e as irregularidades do caminho. Assim, qualquer que seja a doença, todo ato terapêutico aplicado apenas a esse nível de chão//terra, será insuficiente. Pois consertar a carruagem ou pegar o cavalo na mão não desperta de modo nenhum o cocheiro; enquanto a abertura do consciente, ainda que não seja suficiente para curar por si mesma, ao menos consolidará os resultados terapêuticos aplicados a outros planos” 7 .
As terapêuticas da alimentação da estrutura do corpo-mente (1); da prescrição de medicamentos (2); da aplicação da acupuntura e moxabustão (3); da prática das massagens Do-in e Tui-ná (4), das práticas corporais do Tai Chi Chuan e do Chi Kung (5), e da distinção entre o essencial e o acessório nos diferentes órgãos – cirurgia (6) podem ser ou vir a ser apoios terapêuticos importantes para a terapêutica essencial da abertura do consciente.
E como conseguir a abertura do consciente? Não estaria a medicina tradicional chinesa, e porque não dizer as medicinais tradicionais dos povos milenares, se referindo às práticas de meditação como caminho de realização espiritual? Rumo à realidade primordial, ao transcendente, ao imortal, o Tao Absoluto …
Notas
Foto de capa: LANGRE, J. Do-In. Técnica oriental de auto-massagem. Rio de Janeiro: Editora Ground – Informação, 1977
1 LAO TSE. Tao Te Qing: O Livro do Sentido e da Vida, Rio de Janeiro: Editora Ground – Informação, 1977, p.19.
2 LAO TSE. Já citado, p.19.
3 CANÇADO, J. C. L. Do-In. Livro dos Primeiros Socorros, Rio de Janeiro: Editora Ground – Informação, 1976, p. 15.
4 MOURA, S. Massagem terapêutica chinesa – Curso de Formação. Bases da Medicina Chinesa para Massagem. Rio de Janeiro: Mimeo, 2014, p.17-18.
5 LAO TSE. Tao Te Qing: O Livro do Sentido e da Vida, Rio de Janeiro: Editora Ground – Informação, 1977, p.18.
6 LANGRE, J. Do-In. Técnica oriental de auto-massagem. Rio de Janeiro: Editora Ground – Informação, 1977, p. 59.
7 LAVIER, J-A. Médicine chinoise – Médicine totale, Paris: Éditions Grasset at Fasquelle, France, 1973, p. 149,151.
Referências bibliográficas
CANÇADO, Juracy Campos L. Do-In. Livro dos Primeiros Socorros. Editora Ground – Informação. RJ, 1976.
LANGRE, Jacques de. Do-In. Técnica oriental de auto-massagem. Editora Ground – Informação. RJ, 1977.
LAO TSE. Tao Te King. O Livro do Sentido e da Vida. Hemus Editora Limitada. SP, 1983.
LAVIER, Jacques-André. Médicine chinoise. Médicine totale. Éditions Grasset & Fasquelle. France,1973.
MOURA, Sarah. Massagem terapêutica chinesa. Curso de Formação. Bases da Medicina Chinesa para Massagem. (mimeo). RJ, 2014.
SHAKER, Arthur. Mindfulness (Meditação da Consciência Atenta), Neurociências e Saúde. Coleção: Visões rumo ao Dhamma. SP, 2014
TABOSA, Ângela. A Medicina Tradicional no Oriente e no Ocidente. (apontamentos). 2º Simpósio Internacional de Medicinas Tradicionais e Práticas Contemplativas, Unifesp, SP, 17-18 setembro 2010.