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O Eu e o Outro nas Tradições Espirituais:

Figura 11_V2

Tradições indígenas, Educação e Alteridade1

Arthur Shaker Fauzi Eid (2025)

Antigamente o nosso povo, nossos avós viviam no escuro. Naquele tempo não existia o céu, nem o dia, era tudo escuro. Era escuro mesmo, era noite. O tempo todo escuro. Também, não havia fogo2.

Assim, se inicia o mito Xavante sobre os tempos da escuridão: Noite, escuridão… A noite tem muitas escuridões, algumas visíveis, outras invisíveis. Também, não havia fogo. Tempos difíceis, antigamente.

Não tinha comida. As mulheres coletavam coró, as larvas grandes, wede wai’u; e, também, pau seco, podre. Era uma colheita que elas faziam para alimentar. Povo antigo não tinha nada, nada, nada, nada. Para se alimentar tinham de procurar aqueles paus podres. Povo antigo se alimentava com isso. Sofria de fome, vivia só com coró e pau podre. Coró tem muita gordura, o bicho é muito gordo e gostoso. O povo antigo comia coró cru, não tinha fogo, era escuro, não tinha nada.

Assim, prossegue o mito: No escuro, os homens. No escuro, não conseguimos ver nosso rosto, não conseguimos construir algo que seja nossa autoimagem. Talvez nem tenhamos sequer a ideia de que haveria algo chamado rosto, ou autoimagem. Apenas nosso tato talvez nos desse informações presentes no mundo entorno.

A noite tem muitas escuridões. Na escuridão sem rosto, os homens e mulheres sabiam que não estavam sós. Também, havia homens e mulheres sem rosto coletando; e homens e mulheres sem rosto, mas com vozes. Eu e o outro, os outros…

Porém, como entender o que seja “o eu e o outro”? A pergunta parece tola, alguém diria: “é simples, eu sou eu e o outro é um outro ser que não sou eu, um ser diferente de mim”. Mas será a pergunta tão tola assim, ou tomamos por óbvio o que ignoramos? A pergunta se recoloca: de onde provém a diferença? Como entender o igual a mim e o diferente de mim?

Subjacente a isso, está a questão do mesmo e do outro; ou dito em outros termos, da identidade e da alteridade. Nos vemos como uma individualidade diante de outras individualidades; mas, raramente nos perguntamos: o que é esta individualidade com quem nos identificamos? Qual é sua natureza? Como ela se relaciona às outras individualidades?

Vamos prosseguir pelo mito: O céu já existia, mas era uma parte só, não era inteiro. Era como uma onda da água do rio, levantando-se só de um lado. Era pouco. Desse lado do höiwarã sudu (poente) não tinha nada ainda, era pouco ainda. Em volta não tinha nada, era só espaço. O céu está sendo criado, era baixo.

O céu está sendo criado diz o mito. Os mitos cosmogônicos falam de uma ontologia do espaço e dos seres vivos. Isto significa a ipseidade e a alteridade. Na Matemática moderna, aprendemos que o um é metade do dois. Mas na Matemática tradicional, como a Pitagórica, o dois é metade do um3. Ou seja, o Dois nasce da polarização do Um, não o um numérico quantitativo, mas a Unidade primordial, o Ser (princípio dos seres). Para que o mundo se manifeste, o Ser primordial se polariza e desta trama e urdidura se desenrola uma progressiva diferenciação que engendra os seres. Processo, esse, que se baseia analogicamente à formação dos números de Um a Dez; fundamento de toda Matemática tradicional.

Como apontado por GUÉNON (1976)4:

Segundo a Kabala, o Absoluto para se manifestar se concentra em um ponto infinitamente luminoso, deixando as trevas em sua volta; esta luz dentro das trevas, este ponto dentro da extensão metafísica sem limites, este nada que é tudo dentro de um tudo que é nada, se assim podemos expressar, é o Ser no seio do Não-Ser, a Perfeição ativa (Khien) dentro da Perfeição passiva (Khouen). O ponto luminoso é a Unidade, afirmação do zero metafísico, que é representado pela extensão ilimitada ou Possibilidades Infinitas universais. A unidade ao se afirmar, para se fazer o centro de onde emanarão como múltiplos raios as manifestações indefinidas do Ser, está unida ao Zero que a contém, em princípio, no estado de não-manifestação. Aqui já aparece em potencialidade o Denário, que será o número perfeito, o desenvolvimento completo da Unidade primordial.

Assim, teria iniciado a abertura dos horizontes cosmológicos. Com a luz, a visão mais ampla da diferenciação, das alteridades. O céu era somente uma parte. O sol e a lua já estavam lá. O sol já estava clareando o céu. Na mitologia Xavante, dois meninos se transformarão em sol e lua.

Com a luz, a visão mais ampla da diferenciação e das alteridades teria iniciado a abertura dos horizontes cosmológicos. O céu era somente uma parte. A diferenciação abre o mundo das formas. Na penumbra, o olho descobre a forma, e no espelho vê o rosto, a face. “Isto sou eu!”. Começa a surgir o senso de identidade, trazendo certo êxtase. A palavra êxtase vem de ex-stare, “estar fora de si” [do verbo latino exsto, significando “projetar-se ou estar fora de si”]. O ser humano sai de dentro de si ou para fora de si. Cosmologicamente a diferenciação acarreta uma saída, e, portanto, certa perda da interioridade para a exterioridade. O ser humano se vê em sua autoimagem, como algo fora de si. O espelho e a exterioridade.

Conta a mitologia grega que Nêmesis, deusa da Justiça Divina, encarregada de exercer a vingança divina contra o orgulho humano, resolveu castigar Narciso, filho do Deus do rio Cefiso e da Ninfa Liríope. Embora as Ninfas enamoradas por sua beleza o perseguissem, Narciso desprezava o amor. Como apontado por Ruth Guimarães (19)5: “Um dia [Nêmesis] fez com que Narciso contemplasse o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, onde fora se refrescar. Insensível a tudo mais, ali ficou o moço, extasiado diante da beleza do rosto que via no fundo da água. E assim permaneceu até morrer. No lugar onde morreu brotou uma flor que se chamou narciso”.

A abertura não traz apenas alegrias, visões de espaço e beleza. Saindo da indiferenciação protetora da escuridão primordial, a forma se vê como identidade verdadeira. Crê no que lhe parece ser “Isto sou eu!”. Cobertos pelo véu de Maya – que faz as formas se esquecerem da verdade de sua origem na não-forma – os seres (as formas) se veem diante de outras formas. No mito Xavante sobre a criação do Sol e da Lua, a luz evidencia uma estranheza: o fechamento da abóbada celeste. A abertura trazendo sua outra face, temerosa: a prisão dentro do Cosmos.

De repente surgiu algo subindo, aquela fumaça, igual fumaça. O início era como neblina, fumaça, hunhizé, subindo. Todos acharam: “Que coisa estranha que estava vindo!” Não estava bom para eles, não estavam achando bom isso. Eles não queriam que o céu se criasse. O céu estava começando a subir, e eles não gostaram, não estavam achando muito bom isso. Queriam que limpasse, não estava agradando isso. Então eles queriam derrubar, antes que o céu se desenvolvesse por inteiro. Queriam derrubar, derrubar, derrubar [Romhõsi’wai hawi rowa’õno re ihöimana mono].

Estranheza. Derrubar, derrubar alteridades. Espaços de ocupação e ameaça trazida pela existência de outros. O espelho, o rosto e “eu” diante de… “Que coisa estranha estava vindo!” O “eu” e o “outro”, e o paradoxo: para o outro, nós somos o outro.

Neste amplo campo ardiloso do “eu” e do “outro” encontramos um desafio ainda mais exigente: quanto mais diferente for a cultura do outro, tanto maior o esforço necessário para sua compreensão, aceitação e relacionamento. Para a sociedade brasileira, as tradições indígenas ainda são o outro mais distante dela.

Como vamos adentrar por este mundo do outro indígena, muito distante da forma de viver e pensar da sociedade ocidental moderna? E vê-lo não segundo os nossos olhos, mas a partir dos olhos dele; ao menos o mais próximo possível? A propósito desta dificuldade, certa vez, um amigo me contou a seguinte história:

“Sentado, o novo pretendente aguardava o mestre zen. Esperava que esse mestre o aceitasse como discípulo. O mestre entrou e se sentou diante dele.

“O pretendente foi logo dizendo as razões que o trouxeram ali e tudo que tinha estudado e praticado. O mestre ouviu, quieto. E disse-lhe: ‘Coloque sua mala no canto esquerdo da sala’. O discípulo ficou tenso, ansiava por ser aceito. Como atender ao pedido do mestre se não tinha mala alguma na mão?

“Voltou e se sentou. ‘Coloque sua mala no chão’, disse o mestre. Silêncio. De súbito, o pretendente entendeu: a mala era a bagagem mental distrativa de suas ideias, que lhe impedia de estar ali, presente, aberto à realidade presente. Silêncio. Quietude.”

Em 1549, Pe. Manuel da Nóbrega escrevia: “Essa gentilidade a coisa nenhuma adora, nem conhecem a Deus, somente aos trovões chamam Tupana que é como quem diz coisa divina. E, assim, nós não temos outro vocábulo mais conveniente para trazê-los ao conhecimento de Deus, senão que chamar-lhe Pai Tupana”6.

Para compreendermos o outro, necessitamos procurar nos despir de nossas preconcepções com as quais tendemos a projetar nossa visão de mundo sobre o outro. Temos de abrir um espaço de acolhimento para a estranheza que o diferente nos coloca. Talvez ele nos abra a percepção de uma dimensão de nós até então desconhecida, oculta. Esta é uma questão complexa e um grande desafio para o conhecimento e convivência.

Quando nos aproximamos do universo indígena, chegamos com nossa bagagem de conceitos, quase sempre pré-conceitos. Meu trabalho com os povos indígenas, e mais especificamente junto com os velhos narradores Xavante, revela muitos desafios para o conhecimento de suas tradições, espiritualidade e cosmologias.

O primeiro grande desafio é o nosso olhar colonizador. A história da colonização não se encerrou. Ainda tem muitos braços. Sutil e não menos violento são os condicionamentos intelectivos da cultura ocidental introjetada em nosso olhar. Olhamos o mundo segundo os padrões cristalizados em nossa mente. Nesses padrões, a ignorância determina como efeito a aversão ou seu aparente oposto: o romantismo. O índio, o bom selvagem, pensava Rousseau. O deleite pelo exótico.

Uma primeira camada destes padrões ignorantes é aquela mais grosseira: índio é atrasado, primitivo, preguiçoso, retarda o progresso, tem muitas terras, é selvagem, e perigoso. Chegou-se a dizer que índio não tem alma; portanto a conversão catequética era um ato de misericórdia salvadora.

Houve até um caso de um prefeito do interior do Brasil que editou um decreto proibindo a entrada de índios em “sua” cidade. Ou restaurantes que não servem refeições a índios, mesmo que estes tenham dinheiro para isto. Para não falar de outros temas como o relativo descuido para com a saúde indígena, a demarcação de suas terras, a cobiça dos grandes interesses pela madeira, minérios e recursos naturais no subsolo das Terras (reservas) indígenas.

Uma segunda camada é a da ignorância letrada. Um pesquisador mostrou um desses aspectos equivocados que tomamos como verdade. Muitos livros de História do Brasil nomeiam a progressiva história colonial como “Povoamento do Brasil”. Mas como mostra este pesquisador, isto poderia (e talvez até deveria) ser olhado por outro ângulo.

Considerando que havia de cinco a dez milhões de indígenas no início da colonização, e, segundo os primeiros resultados do Censo IBGE de 20227, a população indígena atual é de 1.693.535 pessoas, o que corresponde a 0,83% do total do Brasil. No Censo de 20107, os mais de 305 povos indígenas somavam 896.917 pessoas. O termo correto seria a história colonial ser referida como “o período do despovoamento do Brasil”. E a nomeação de “Descoberta do Brasil”? Não seria mais correto nomear de “Invasão do Brasil?”

Pensadores como Sullivan mostram que muitos dos conceitos da Ciência Antropológica – mito, rito, religião, História, símbolo, cultura, povo, ideologia, sagrado etc. -, embora possam ser até certo ponto operativos para um primeiro apoio cognitivo do “outro indígena”, tendem a nublar nosso olhar diante da plena e criativa presença desse universo indígena. Esses termos são frequentemente criados, ainda que inconscientemente, para evitar a presença esclarecedora dessas culturas na história8.

Os padrões de ignorância condicionada se tornam ainda mais limitantes, quando se trata da complexa esfera de realidade do mundo mítico-religioso indígena. Com seu alto grau de sutileza, em suas formas tão distintas do familiar religioso do mundo ocidental. Dentre esses conceitos, talvez os mais problemáticos sejam religião e sagrado. Não existe entre o povo Xavante a noção de uma esfera do religioso que se distingue do não-religioso.

Quando falam no religioso é para se referir aos missionários e, por extensão, ao Cristianismo. Não há para eles um “campo da religião”, em distinção de outras áreas da vida psíquica, social e simbólica. Ao menos nos moldes com que se entende e se vivencia o religioso no mundo ocidental moderno, em que se associa o religioso às noções de culto, adoração e esfera da vida dirigida ao transcendente; já bastante desconexa das outras esferas da existência cotidiana.

Os velhos acreditam e confiam em seus criadores míticos, “mas não vão chorar e rezar aos seus”. O que não significa que eles não sintam certa “saudade” desse povo primordial com seus poderes. O que traduz o reconhecimento dos velhos sobre a sua Alteridade em relação aos seres primordiais, e fundamenta a própria identidade Xavante (eles se autodenominam A’uwe, que significa “povo verdadeiro”).

Conceitos como transcendente, imanente, religião, espiritual, natureza/sobrenatureza precisam ser revistos à luz da própria visão indígena. É preciso procurarmos nos aproximar da compreensão do mundo indígena, através da apreensão dos conceitos e significados com que eles mesmos, como agentes de sua cultura e história, se percebem a si mesmos. Conceitos com os quais eles se autorreferenciam, e através dos quais compreendem seus fundamentos, origens, símbolos, e paradigmas de ação no tempo e espaço. Nos conceitos próprios do mundo indígena estão as vias de acesso para a compreensão do conteúdo de seus universos míticos.

Assim disse Sereburã, um dos velhos narradores da comunidade Xavante de Pimentel Barbosa:

“O povo A’uwe de Etênhiritipa mantém a Tradição. É assim que eu vou falar; para que nossos filhos aprendam e mantenham a Tradição para as futuras gerações. Para que não acabe nunca.

“Em Etênhiritipa existe a presença viva da força da Criação. Nós somos o povo verdadeiro, nós mantemos o espírito da Criação. A Tradição deve permanecer. Ela vem de antes de nós e vai seguir em frente.

“Eu me chamo Sereburã. É assim que eu vou falar sobre a minha Tradição. Ãné!9

Compreender e descolonizar a percepção e a projeção de nossa ignorância sobre o outro, ainda mais se tratando do “outro indígena”, não é fácil. Exige um constante trabalho de revisão dos nossos padrões intelectivos, éticos e de ação. Mas é também importante sabermos aceitar que, ainda que nos esforcemos para ganhar uma proximidade com o olhar do outro, há limites de consciência possível para a compreensão da cultura do outro; embora possamos reduzir esse limite através de um esforço de reeducação e educação de nossa mente. E isso significa muitas vezes, entre outras coisas, uma desconstrução e reconstrução de nossas ideias e atitudes.

Há uma terceira camada de ignorância que condiciona não apenas nosso olhar sobre o outro indígena, mas sobre toda a realidade: a pretensa autoidentidade do ego, o “eu”. Supomos, pela ignorância, que nossa ipseidade é esse senso do “eu”, a identificação com nossos agregados psicofísicos, que tomamos como sendo o “eu”.

Na teoria da mente budista, esses cinco agregados (corpo, sensação, percepção, formação mental e consciência sensorial) são chamados de agregados do apego; pois são a raiz do sofrimento, originado pela cobiça, a aversão e a delusão. Esses agregados são não-eu, anatta. Como apontado por Buddha:

“[…] Monges, qualquer corpo (ou objeto sensorial), qualquer sensação, qualquer percepção, qualquer formação mental, qualquer momento de consciência, seja interna ou externa, grosseira ou sutil, inferior ou superior, passada, presente ou futura, eu digo que todas devem ser vistas como na verdade são, com correta sabedoria, com insight perfeito, assim: ‘Isso não é meu, isso não sou eu, isso não é o meu eu’. Vendo dessa maneira correta, tendo consciência deste corpo e de todas as condições externas, não surge a tendência ao conceito “eu” e “meu” em relação a esses cinco elementos da existência10.

A falta de visão correta cria a prisão na teia da ilusão, em que o “eu” busca proteger sua pseudo identidade, se agarrando não só ao mundo exterior, como também ao seu “mundo mental”, construído de representações de si mesmo equivocadas, e reagindo com aversão, ódio e violência, chegando até a guerra, quando o “eu” e o concomitante “meu” e “mim” se sentem, em sua cobiça e desejo, ameaçados “pelos outros” ou pelas barreiras das condições externas. A alteridade carrega em si a potencialidade do conflito11.

Mas a dualidade é sinônimo apenas de conflito e separatividade irredutível? É preciso uma compreensão clara e correta da realidade existencial, e esta pode ser apoiada pela Metafísica (Sabedoria Transcendente, para além-Meta da realidade condicionada-Physys), Cosmologia12 e Religiões Comparadas. Imbricada na própria dualidade está a outra face talvez não vista por Narciso: A verdade da interdependência de todos os seres. A interconectividade dos seres cria o espaço para abertura ao outro, a comunicação, a solidariedade e a compaixão. Aqui se coloca um ponto fundamental: A perspectiva espiritual correta. Tendo a teoria e prática, indissociáveis, trata-se de compreender que tomar o “eu” como sendo a verdade última da ipseidade humana é a grande ilusão; assim, como a fonte de sofrimento para consigo e na relação com os outros. Quando Cristo afirma o segundo mandamento do “amar ao próximo como a ti mesmo”, quem é o “próximo” a ser amado?

Em um nível mais exterior, tendemos a considerar “os outros” apenas como os seres humanos (às vezes nem isso); esquecendo de incluir os outros seres vivos do mundo. Basta ver como nossa época tem tratado com agressão o meio-ambiente e os reinos animais e vegetais13. Como vemos os seres vivos; mais especificamente os seres humanos?

Se nosso olhar enxergar os humanos apenas como realidade corporal e mental, embora esse “amar ao próximo” seja importante, ainda mais nesses tempos de um mundo cada vez mais egóico e agressivo, está restrito ao âmbito da individualidade dos seres: um amor parcial, limitado, marcado pela preferência. Poderá inclusive permanecer numa esfera de um vago e superficial sentimentalismo.

Há um nível mais profundo que passa por uma compreensão maior do que seja “o próximo”. No Corão está dito que Deus está mais próximo do homem que sua veia jugular (Surata 50, versículo 12, Kaf)14. O sentido mais profundo do “próximo” refere-se ao princípio divino, a verdade última, e não ao “eu” enquanto individualidade psicofísica, agregado efêmero e residência da ilusão.

Se alguém quiser vir até mim, renuncie-se a si mesmo (Matheus, 16, 24). Poderíamos entender que Cristo esteja orientando é que se ame a ipseidade que se manifesta na diversidade dos seres. Respeitando e cultivando o bem querer pela singularidade de cada ser, o múltiplo do Uno, mas atentos para não fazer da individualidade a verdade última dos seres. Pois ver a diversidade como algo em si, fechado e autônomo, e que teria uma substância inerente, é cair no pior erro: A ilusão da separatividade, e da independência e autossuficiência ontológica dos seres. Pretensão que nos torna incompreensíveis e sem sentido, e não haveria como amar a ilusão sem nexo.

Poderíamos considerar este ângulo como um dos importantes pontos que aproxima o Cristianismo do Budismo, e de muitas (talvez de todas) Tradições15: A delusão que temos sobre o que nós realmente somos, uma delusão fruto da ignorância que mantém os seres no ciclo da existência condicionada. Se o amor ao próximo, seja por sentimentos ou obras de caridade, não for compreendido à luz do que seja este sentido mais profundo do “próximo”, correremos o risco de restringir o “próximo” à uma imagem refletida de “nosso” próprio ego. Cujo orgulho crescerá com “nossos” atos tomados como provas de “nossa” bondade. Seria por acaso que o maior dos sete pecados capitais seja o orgulho?

No exercício das importantes virtudes da Compaixão e Caridade, o primeiro passo é investigar a pretensa substancialidade inerente do ego, e o significado mais profundo de sermos bem-aventurados “pobres de espírito”. O vazio de ego.

Todos os seres querem ser felizes, e buscam fugir do sofrimento. O instrumento que aqui estamos escolhendo para arrefecer o sofrimento é a Educação. O que seria uma Educação orientada pela Sabedoria, que abra espaço para a acolhida do outro?

Sabedoria não é sinônimo de informação. Em nossos dias, há uma grande disponibilidade de informações, mas o que dizer da formação? Diz a Sabedoria: Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra […]. Bem-aventurado o homem que me dá ouvidos, velando às minhas portas a cada dia, esperando às ombreiras da minha entrada. (Provérbios, 8, 23-34).

Se olharmos a raiz latina da palavra educar, veremos que provém do prefixo e (“para fora”) e ducere (“conduzir”). Educar significa trazer para fora, para a luz, algo latente. Também, tem o sentido de “erguer, levantar”. Algo análogo ao conceito grego de Paideia, proveniente da raiz paidos (pedós) – criança; empregada para sintetizar a noção de educação. Educar sendo o “domesticar, domar, ensinar”, como um pai que toma a sua própria mente como seu filho, e o ensina a lapidá-la. Mas o que nós seres humanos temos latente16 e caberia à Educação expressar e lapidar? Nossas tendências saudáveis, como o amor, amizade, sabedoria, arte, beleza, e a propensão à iluminação libertadora.

Mas, também, nós temos nossas tendências latentes não-saudáveis da cobiça, do ódio e da delusão. E a maior das delusões é o apego à crença de que o ego, o “eu”, seja nossa identidade verdadeira. Desapegar-se dessa crença não é fácil: Cuidai vós que vim trazer paz à terra? Não, vos digo, mas antes dissensão; porque daqui em diante estarão cinco divididos numa casa: três contra dois, e dois contra três (S. Lucas, 12, 51-52).

A reeducação, o esforço e a luta interior para além das dualidades e da delusão é um longo caminho rumo à grande Paz presente momento a momento. Nas palavras de Gandhi: “Nós apenas refletimos o mundo. Todas as tendências presentes no mundo exterior são encontradas no mundo do nosso corpo e mente. Se pudéssemos mudar nós mesmos, as tendências do mundo também mudariam.” (MAHATMA, G. HindiSwaraj: Indian Opinion 11-1, 1913; fundado por ele)  

Notas

1 Trabalho apresentado no I Simpósio de Ciências da Religião: Religião: Alteridade e

Educação, 25-27 Agosto 2008, Faculdade de Ciências da Religião, das Faculdades

Integradas Claretianas, SP. Revisado em 2025.

2 SHAKER, Arthur (2002), p. 79.

3 Sobre o tema veja, entre outros, Mário Ferreira Santos (1965).

4 GUENÓN, René (1979-a), pag. 58-59.

5 GUIMARÃES, Ruth (1983), pag. 228.

6 LEITE, Serafim (1954), p.150.

7 IBGE (2010 e 2022).

8 SULLIVAN, Lawrence Eugene (1988), p. 16-17.

9 SEBURÃ et al. (1997).

10 RAHULA BHIKKHU, Yogavacara. (2006), p. 23.

11 SHAKER, Arthur (2003). p. 110.

12 GUENÓN, René (1976-b).

13 Sobre este tema veja, entre outros, Seyyed H. NASR (1977).

14 DAWOOD (1977), p.122; CHALLITA, Mansur (1978), p. 283.

15 SHAKER, A. (1999), p.43,44.

16 Sobre a questão da condição humana, veja Arthur SHAKER (2007).

Referências Bibliográficas

1 Trabalho apresentado no I Simpósio de Ciências da Religião: Religião: Alteridade e Educação, 25-27 Agosto 2008, Faculdade de Ciências da Religião, das Faculdades Integradas Claretianas, SP. Revisado em 2025.

2 SHAKER, A. (2002). Romhõsi’wai hawi rowa’õno re ihöimana mono – a Criação do mundo segundo os velhos narradores Xavante, tese de doutorado, IFCH, Fac. Ciências Sociais, Etnologia Indígena, Campinas: UNICAMP.

3 SANTOS, M.F. (1965). Pitágoras e o Tema do Número, SP: Ed. Matese.

4 GUENÓN, R. (1976-a), Melangés. Paris (FR), Ed. Gallimard.

5 GUIMARÃES, R. (1983). Dicionário da Mitologia Grega, São Paulo: Cultrix.

6 LEITE, S. (1954) (In. DIFFIE, B.W. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Durham (NC): Hispanic American Historical Review, vol. 38 – II, 1938, p. 279-289). https://read.dukeupress.edu/hahr/article/38/2/279/162910/Cartas-dos-primeiros-jesuitas-do-Brasil

7 Atlas do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). p. 137. htps://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/#/home

Divulgação dos Resultados – Censo 2022. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/

8 SULLIVAN, L.E. Icanchu’s Drum: an orientation to meaning in South American religions. New York (US): Mac Millan, 1988.

9 SEREBURÃ, HIPRU, RUPAWÊ, SEREZABDI & SERENIMIRAMI (1997). Wamrêmé Za’ra, nossa palavra: mito e história do povo. São Paulo: SENAC. p.22, 165.

10 RAHULA, B.Y. (2006). Superando a Ilusão do Eu. São Paulo: Casa de Dharma, p. 23. (In. Samyutta Nikaya, XXII, 79, Vol. III, p. 916).

11 SHAKER, A. (2003). A travessia buddhista da vida e da morte – Introdução a uma Antropologia Espiritual, Rio de Janeiro: Gryphus. p.110

12 GUENÓN, R. (1976–b). https://ia800301.us.archive.org/35/items/guenon-rene-la-metaphysique-orientale/Gu%C3%A9non%2C%20Ren%C3%A9%20-%20La%20M%C3%A9taphysique%20Orientale_text.pdf

Sobre a Metafísica e a Cosmologia. (In. La métaphysique orientale. Paris (FR): Ed. Traditionelles).

13 NASR, S.H. (1977). O Homem e a Natureza. Rio de Janeiro, Zahar.

14 DAWOOD, N.J. (1978). The Coran. Londres (GB): Penguin Books.

CHALLITA, M. (1978). O Alcorão ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Ed. Associação Cultural Internacional Gibran, s/d.

15 SHAKER, A. (1999). Buddhismo e Christianismo: Esteios e Caminhos. Petrópolis: Vozes,

16 SHAKER, A. (2007). O lugar do Homem nas doutrinas tradicionais, Revista UNICLAR, ano IX, no. 1, nov. 2007. SP: Faculdades Integradas Claretianas.

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