Tudo era claridade, não existia nada.
No princípio não existia nada, só Maira e aquele clarão (l)
Esta misteriosa assertiva inicia uma versão dos mitos de criação do povo indígena Kaapor (2).
Sendo os povos originários povos tradicionais, toda sua estrutura de vida e pensamento se fundamenta na compreensão metafísica-espiritual da realidade, ligando Céu e Terra.
Sendo o mundo terrestre uma expressão manifesta e limitada do Transcendente celeste, não há como compreender aquele sem este.
O caminho da compreensão do mundo indígena exige, como decorrência lógica inevitável, acompanharmos a ontologia de constituição do mundo a partir de sua Origem. Podemos conhecer os ramos de uma árvore, partindo de sua Raiz e chegando até eles, ou vir dos frutos, folhas e ramos, e, descendo pelo Tronco alcançarmos a Raiz.
Partamos dos mitos de criação do mundo, segundo os relatos indígenas. A palavra mito designa aqui a forma sintética de transmissão das fundações atemporais do mundo, sendo o mundo expressão no tempo e no espaço, manifestação transitória do eterno.
Quando se perde a capacidade de ver assim os mitos tradicionais, e se vulgariza seu sentido rebaixando-os ao senso comum do que seria falso, fantasioso, e ilusório, em contraposição a uma imagem mental do que somos levados em nossos dias a imaginar como sendo uma explicação científica e racional da realidade, é porque vivemos em uma época em que a captação espiritual e simbólica do mundo foi tornando-se opaca e incompreensível. Então a compreensão do mundo indígena se torna difícil para a maioria. Mas adentremos com atenção no profundo mundo indígena, buscando fazer deste trilhar um exercício de sabedoria.
À primeira vista, poderia parecer que anterior à Criação era o nada: no princípio (no começo, anterior à criação) não existia (era o) nada. Como se o mito indígena carecesse de uma coerência lógica, fazendo o mundo surgir do nada, paradoxo que parece se reencontrar em outros mitos de criação, como na Gênesis do Velho Testamento. Examinemos alguns termos chaves:
No princípio. Um dos sentidos sugeridos é o da anterioridade temporal, no passado, no começo. Um marco no tempo. Quando ouvimos os contos de fadas iniciando com o “Era uma vez…” parece evocar este sentido de algo que ocorreu uma vez e no passado: uma ideia de sucessão no tempo. Um segundo sentido seria o de anterioridade lógica, como, por exemplo, a sequência dos números reais inteiros l, 2, 3 … n, sucessão já não mais subordinada ao tempo. Pois se imaginarmos uma sucessão como a dos números escritos em uma folha de papel, os números estão ali simultaneamente. Só entrariam em uma sucessão temporal se os recitássemos usando a linguagem oral.
Usando este exemplo, podemos entender que uma sucessão lógica é a base a partir da qual pode se dar uma sucessão temporal. Significa que teríamos um terceiro sentido para o termo “princípio”: base, fundamento.
Continuando neste exemplo, podemos observar que o conjunto dos números reais inteiros tem um princípio, o da unidade, pois todos os demais são gerados pela soma sucessiva com a unidade, indefinidamente. Significa que tudo que existe, seja temporal ou lògicamente, pressupõe um fundamento, um princípio que lhe permita ser o que é, e não outra coisa.
Em nosso exemplo, para que possamos recitar os números inteiros, o que seria o mesmo que dizer, para que os números inteiros possam existir no tempo (através das recitações), é preciso que haja um princípio lógico anterior (a existência da sequência dos números reais inteiros). Este por sua vez pressupõe um princípio anterior, a geração dos números pela adição da unidade. Vemos que o termo “anterior”, além de posição no tempo e espaço, pode significar fundamento ontológico, e como tal, “superior” à sua expressão.
Assim, de princípio em princípio, de fundamento menor a fundamento maior, como que abríssemos círculos a partir de um centro, ou subíssemos degraus a partir de uma base, ou galgássemos uma montanha descortinando paisagens mais amplas, não teremos senão que chegar ao Topo, ao Centro. O Infinito, o Princípio Supremo. O Absoluto. No Princípio, dos princípios.
Inypyrú. Assim inicia-se o mito de criação dos Apopokuva-Guarani (3). O termo inypyrú, o princípio, tem a raiz ypy, princípio, origem, fundamento, do qual decorrem termos como rekoypy, originários, originais; onemboecypi, originar-se; ypykue, antepassado. O relato mítico dos Mbyá-Guarani do Paraguai abre-se com “Maino i reko ypy kue – os costumes primitivos do Colibri “(4), este personificando o aspecto criador da divindade.
O termo ypy também significa primitivo. O termo primitivo carregou-se da preconceituosa conotação do “atrasado, grosseiro”, acalentada pela hipótese ocidental do evolucionismo, com que se pretendeu dar estatuto de cientifico à ideia de que a sociedade ocidental moderna seria o marco evoluído de uma trajetória da humanidade onde os povos indígenas ocupariam o lugar dos que se mantiveram atrasados e presos no tempo a um estágio “primitivo” desta escala ascensional.
Pretendeu-se com isto fazer da conquista tecnológica moderna o avalizador do “estágio de evolução” dos povos. Mas aqui o termo primitivo tem o sentido de princípio e primeiro. A anterioridade temporal dos povos indígenas alude à antiguidade, aos primórdios, em que os povos originários se comunicam quase que diretamente com os deuses, com seus princípios.
Por isso, o primórdio dos tempos era o tempo dos povos primordiais. A estranha fascinação que os povos antigos (e as ciências que hoje deles se ocupam, como a Arqueologia e a Antropologia) exercem na mente do homem moderno evoca o mistério de um mundo mítico que se escondeu ante aos olhos dispersos do mundo moderno secularizado.
No princípio. Fundamento, o que sustenta. Se olharmos para um outro lado do mundo, a cosmogonia de Moisés, livro I do Velho Testamento, que se inicia No princípio criou Deus os céus e a terra, o termo No princípio em hebráico é Beraeshith, que significa primitivamente-em-princípio. No princípio, antes de tudo, em princípio, na potencia de ser. O princípio como potencia absoluta, por meio do qual todo ser relativo é constituído como tal. Como no grego Arkhé. A raiz do termo Baereshith é Rash, e designa a cabeça, o guia, o chefe, o Princípio agente (5).
O Absoluto como fundamento insondável da Realidade está presente na base de todos os Povos Originários, milenares, dos quais os povos indígenas do Brasil fazem parte. Poderíamos indagar se o conceito de Absoluto, princípio pilar de toda visão metafísica-espiritual, aparece frequentemente nos relatos míticos indígenas, e em que termos, ou se corremos o risco de sobrepor à visão dos povos indígenas do Brasil uma noção alheia a seus povos.
O relato mítico dos Mbyá-Guarani prossegue evocando a Nande Ru Pa-Pa Tenonde, nosso Pai (Nande Ru) Pa-Pa (último-último) Tenonde (primeiro) e sua atividade criadora . O conceito de último-último primeiro, à semelhança de um Omega-omega Alfa, vale-se dos símbolos dos dois extremos do espaço-tempo. Oferece à mente humana um suporte possível de aproximação compreensiva da verdade do Absoluto, mas como símbolo necessita ser transposto por uma intuição sintética superior, pois o termo último-último primeiro alude, evoca, simboliza o Infinito cuja imagem tosca e manifesta é a extensão indefinida dos extremos do espaço: “em virtude de haver existido nos últimos confins do espaço é que o chamamos “nosso Pai último-último primeiro”, esclarece um Mbyá-Guarani (6).
Deslocando-nos do sul para a região do rio Negro, no Amazonas, vamos encontrar no relato mítico dos Desana, povo da família Tukano que habita nessa área, as seguintes palavras iniciais: no princípio o mundo não existia (7). A afirmação de uma Realidade suprema, como substrato principial de toda realidade dos mundos que existem, aparece explicitado ou sugerido nos relatos míticos desses povos, que, de uma forma ou outra, tornaram esses relatos escritos e acessíveis. Ainda há poucos relatos míticos escritos e relativamente completos na literatura etnográfica brasileira, e à medida que surgirem, poderão esclarecer melhor sobre a presença e as formas aludidas a esta noção de Absoluto entre os povos indígenas do Brasil (8).
No princípio não existia nada. Se o Absoluto como Princípio Supremo e Infinito é o fundamento de toda Realidade, pareceria paradoxal o inicio do mito: no princípio não existia nada. Como se o “nada” quisesse dizer que “no princípio” (no infinito) não há nenhuma positividade. Não existindo nada no princípio, este seria nulo. Mas o relato afirma a seguir que no princípio tudo era claridade. Portanto triplamente positividade: tudo, era, claridade. Plenitude, Ser, Luz.
O termo “nada” poderia parecer dizer aniquilamento, vazio, zero. Muitos tratados de matemática moderna e dicionários dão ao número zero o sentido de “nada, não-algo, o nada”. Do mesmo modo, muitos pensadores ocidentais, ao se depararem com a afirmação budista de que a Realidade Suprema, o Nibbana (Nirvana) é vazio, interpretaram essa noção de vazio como sendo “um nada”, e que, portanto, a tradição budista pregava a negação de um Deus supremo, o nihilismo e a desesperança Pois se tudo é o vazio, em que esperança o homem poderia se apoiar para enfrentar os sofrimentos da existência?
Para compreendermos melhor estes aparentes paradoxos, recorramos a uma tradição do outro lado do mundo, mas que se fundamenta em princípios metafísicos-espirituais análogos aos das tradições indígenas. Vamos encontrar na tradição hindu um significado mais profundo para o termo “zero”.
Este termo aparece referido aos termos shûnya (origem etimológica da palavra “zero”) e pûrna, que significam vazio e plenitude. Surpreendentemente, “se referem a uma mesma noção; este supõe que todos os números estão virtual ou potencialmente presentes no que não tem número. Se expressarmos esta ideia mediante a equação 0 = x-x, vemos que o zero é para o número o que a possibilidade é para a atualização“ (9).
Nesta mesma ordem de ideias, outra palavra referida ao zero é o termo ananta, cujo significado é infinito: “o uso do termo “ananta”… implica a identificação do zero com o infinito… É de se notar que esta ideia já se encontra nos primeiros textos metafísicos, por exemplo, no Rig-Veda” (10). Em síntese, o zero, longe de significar o nada–ausência de realidade, simboliza a plenitude, o Princípio Absoluto (11).
No princípio não existia nada. Poderíamos argumentar que apesar do percurso explicativo feito em torno da noção de Princípio Absoluto, o inicio do mito indígena ainda pareceria obscuro e soaria como inexistência. Adentremos no sentido da palavra “existir”.
Em um senso comum, associa-se “existir” com a positividade, o real, e sua negativa (não-existir) como o nada ou ausência de realidade. Mas o termo “existir” vem de ex-stare, que significa “estar fora”, portanto uma “posição fora” em relação a um “dentro”, quer dizer a instauração de uma dualidade. Portanto, “a existência” já é uma exteriorização, manifestação da Realidade Suprema, já implica em uma limitação, uma realidade condicionada. Um modo, um mundo. Por isso os relatos míticos indígenas iniciam dizendo que “no princípio não existe nada”, “no começo, quando tudo era indistinto…” (12).
Significa que na indistinção do Absoluto não existia nada que lhe esteja fora, nada que seja ex-stare, existência. Não estando fora, não há dentro-fora, não há obscuridade, não há dualidade, luz-obscuridade. Tudo era claridade, não existia nada. É preciso afiar a mente para se penetrar na sutileza da visão metafísica-espiritual. No princípio não existia nada, dizem os povos indígenas, só Maira e aquele clarão. Na metafísica espiritual dos povos milenares da Ásia, como no Budismo, usa-se o termo “iluminação” para referir-se ao atingimento dessa Realidade Incondicionada, chamada muitas vezes como o Grande Vazio, sunnyata. Maira e o clarão são um só. Como o Um está contido no Zero, poderiam também dizer, Maira é o clarão, o zero, o vazio, Infinito eterno in-distinto.
No princípio o mundo não existia. As trevas cobriam tudo, prossegue o mito dos Desana. Como a natureza do Absoluto é não-dual, não há distinção luz/ obscuridade, por isso o termo “trevas” tem aqui o significado superior de plena luz (13). A Absolutidade, In-finito, sendo Possibilidade Universal, contém dentro de si todas as Possibilidades: o Ser, o Um, princípio das possibilidades de manifestação, contido no Não-Ser, o Zero, o Tao sem Nome, princípio do Ser e das possibilidades de não-manifestação, recônditos guardados no âmago misterioso da Grande Escuridão divina, Perfeição total que não conhece distinção nem oposição.
O Ser, o Tao com Nome, é a Determinação principial, primeira, princípio de todas as possibilidades de manifestação. Aí se incluem os mundos (possibilidades) que já se manifestaram, os que estão se manifestando e os que se manifestarão. Constituem a existência, os mundos em sua multiplicidade, modos relativos e restritos de ser. Mas no Absoluto não há distinção, que parece existir apenas aos nossos olhos que não podem conceber o não-manifesto diretamente senão através do manifesto; esta distinção existe, portanto, para nós, mas ela não existe senão para nós (14).
Esta aparente distinção entre o Absoluto e o mundo manifesto, que os hindus chamam de Maya (termo que tem uma dupla significação, como ilusão, mas também arte), é apenas aos nossos olhos iludidos da existência, em que o mundo parece algo apartado, separado, solto, aquário encerrando seus peixes em torno de um aparente nada. Por isso, dizem os relatos dos povos indígenas, no princípio o mundo não existia. Veremos em seguida, “quando não havia nada”, como brotou o mundo.
Notas
(1)- Ribeiro, Darcy- Uirá sai à procura de Deus. Rio de Janeiro: Paz e Terra, l976, p.20.
(2)- Os Kaapor (também chamados de Urubu-Kaapor), que significa “os moradores da mata”, (o termo “Urubu” é designação não-indígena), são um povo da família linguística Tupi- Guarani, que hoje vive no Maranhão, na região dos rios Gurupi, Turiaçu e Pindaré. Ocupavam, entretanto, como a maioria dos outros povos da língua Tupi, toda a costa brasileira na época da chegada dos colonizadores. Anterior a isso, a larga presença das tribos Tupi-Guarani pelo continente sul-americano sugere numerosos e recentes movimentos migratórios dos interiores para o litoral, expulsando os ocupantes anteriores em sucessivas guerras. Há indicações de que esses movimentos se deveriam a um conjunto de fatores como a explosão demográfica, fertilidade e abundancia dessas regiões, às quais associavam o litoral à mítica Terra sem Mal. Há sobre isso vários trabalhos escritos, entre eles, ver: “Os tupis-guaranis antes da conquista”, in Terra sem Mal – o profetismo tupi-guarani, Hélène Clastres. São Paulo: Ed. Brasiliense, l978. A despeito da grande perda populacional provocada pelo contacto com os homens brancos, da sensível diminuição do número de seus pajés e da influencia religiosa cristã com a incorporação dos dias santos e batizado cristão entre grupos indígenas desta área, os Kaapor ainda preservam a base de sua tradição indígena.
(3)- Os Apopokuva-Guarani são um povo do grupo Ñandeva, que junto aos Kayová e os Mbyá, formam o grande grupo dos Guarani, que habitam regiões do Paraná, São Paulo, Mato Grosso e o Paraguai. Há indicações de que seria recente a presença dos Guarani nos amplos territórios em que se estabeleceram no séc. XVI. Dos povos indígenas, os Guarani seriam aqueles que desde o início da colonização tiveram mais contacto com as ondas invasoras, e muitos grupos estiveram sob a influencia dos missionários cristãos, através das chamadas “reduções” jesuíticas”. Apesar da influência que as concepções cristãs pretenderam exercer sobre a visão cosmológica Guarani, a extrema resistência desses povos (muitas vezes sob uma aparente passividade), ao longo destes cinco séculos de violências, permitiu-lhes conservar, na maioria dos grupos, a integridade de sua visão metafísica-espiritual e práticas rituais.
Sobre o mito de criação dos Apopocuva-Guarani, temos um rico material em As Lendas da Criação e Destruição do Mundo como fundamentos da religião dos Apopocuva-Guarani, Curt Nimuendaju. São Paulo: Hucitec, l987. A introdução e a bibliografia, organizadas por Eduardo B. Viveiros de Castro, são de importante apoio.
(4)- A compilação dos relatos míticos dos Mbyá-Guarani, feito por León Cadógan, sob o título Ayvu Rapyta, Boletim no. 227, Antropologia no. 5, FFLCHUSP, SP, l959, é um testemunho exemplar de dedicação e rigor de um pesquisador cuidadoso em transcrever e comentar o mundo mítico indígena o mais próximo e fiel à própria visão deste povo. Apresentando em guarani e espanhol os vários capítulos da Cosmologia dos Mbyá-Guarani, com comentários aos termos principais ao final de cada capítulo, o trabalho de muitos anos de L. Cadógan é de extrema profundidade, beleza e riqueza, um importante exemplo. Diante da pressão que os grupos Guarani do Paraguai sofrem por parte da sociedade paraguaia envolvente, o subgrupo dos Mbyá é o que mais se esforça em manter sua identidade tradicional, impedindo a instalação de paraguaios e missionários em suas aldeias. Aliado a isso, a importância e preservação de sua visão, língua e prática espiritual tornam esses relatos fonte ímpar de compreensão do mundo mítico indígena, pois resguardado do sincretismo turvo com outras visões religiosas.
(5)- D’Olivet, Fabre- “Cosmogonie de Moyse”, p.24, second partie, in La Langue Hebraique Restituée. Paris: Ed. L Äge d”Homme.
(6)- Cadogan,León – idem,op.cit, p.l6.
(7)- Kumu, Umusin Panlõn e Kenhiri, Tolaman- A mitologia heróica dos indios Desâna: Antes o Mundo não existia. São Paulo: Liv. Cultura Ed., l980.
(8)- A reflexão sobre este princípio fundamental deve levar em conta uma série de fatores importantes: Em primeiro lugar, lembremos que os povos indígenas são de tradição oral, seus mitos e cantos sagrados são de natureza secreta, e portanto há poucas razões para que fossem revelados, ainda mais se levarmos em conta a violência que os “homens brancos” representaram e ainda representam para os povos indígenas, estigma que indiretamente os próprios etnólogos se vêem forçados a compartilhar em suas indagações com estes povos. Relatos míticos escritos em riqueza e amplitude como a “Ayvu Rapyta”, dos Mbyá-Guarani, recolhidos por Leon Cadógan, ou “Os mitos de criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apopokuva-Guarani”, recolhidos por Curt Nimuendaju foram passos importantes para acesso às cosmovisões dos povos originários. O surgimento progressivo de textos míticos escritos pelos próprios narradores indígenas, como o livro “Antes o mundo não existia”, escrito pelos próprios Desâna, é muito importante e inspirador.
Teríamos de acrescentar na lista das dificuldades a complexa e importante questão da língua tradicional sagrada em que os mitos são contados e cantados. Os termos e sons articulam uma gama de significados em uma hierarquia que vai do mais exterior e exotérico ao mais interior e esotérico, analogando os níveis de realidade do Ser, de modo que a penetração nesses níveis da linguagem só é possível se acompanhados e sustentados por uma correspondente penetração vivencial interior do próprio pesquisador. Ou seja, vivência das etapas de realização espiritual segundo as iniciações, processo que o pensamento e a civilização moderna perdeu de há muito tempo. Suporia que: ou o pesquisador não-indígena fosse agraciado com a iniciação do povo indígena com o qual procura aprender, como parece ter sido o caso de Leon Cadógan, ou que ele tivesse uma iniciação em uma tradição que mesmo não-indígena, lhe desse suporte de compreensão metafísica-espiritual analógica.
Haveria de acrescer que a tradução dos relatos míticos para uma língua não-mítica como as línguas ocidentais já é um sério limite para a compreensão do universo mítico indígena. Há certamente termos e concepções que dificilmente encontraríamos equivalentes nas línguas não-tradicionais. O esforço de Leon Cadógan e C. Nimuendaju, justapondo o texto em Guarani – como os Mbyá e os Apopokuva lhes relataram – com uma versão na língua espanhola, cotejando as várias facetas de significação de termos-chaves com extensos comentários é de um mérito exemplar. Embora o texto dos Desâna seja todo em português, o fato de seus relatores serem “e kumuá”, têrmo que designa na estrutura social Desâna o lugar do “kumu”, que, entre outras funções, tem, como os pajés, conhecimento da mitologia, ritos e costumes tribais, e a presença de apreciável quantidade de explicações e comentários de rodapé, tudo isso minimiza as perdas da tradução. E faz desse relato uma rica fonte de aproximação ao universo mítico indígena. Digo aproximação porque talvez seja o máximo de pretensão que podemos almejar.
Além da questão da língua sacra, há que se lembrar que o mundo mítico indígena, por seu caráter primordial, lida com uma metafísica espiritual que passa pelo mundo da Natureza, onde o reino humano, animal, vegetal e mineral se dialogam intensamente entre si e com os deuses, imbricados em sutis tramas de significados de ordem metafísica, muito distante do pensamento e modo de vida moderno, onde os seres da natureza foram esvaziados de sentido e vida. Destruição da Natureza, ausência de uma língua sacra e de princípios espirituais fizeram da civilização ocidental moderna uma anomalia no conjunto da humanidade: a violência sobre os povos indígenas e a perda de compreensão espiritual são algumas facetas desta tendência decadente.
(9)- Coomaraswamy, Ananda- El Tiempo y La Eternidad. Madrid: Taurus, l980, p .l36.
(10)- Coomaraswamy, A.- Idem, op.cit., p.l36. Lembremos que o Rig-Veda é um dos quatro livros sagrados da tradição hindu, os Veda.
(11)- A interpretação do número zero como “o nada” é apenas a restrita visão quantitativa dos números. Para os povos tradicionais, os números expressam verdades principiais e qualitativas, devendo as ciências compreender sempre os nexos entre o Absoluto e o relativo. A desconexão em que as ciências modernas se enveredaram levaram-nas à fragmentação e um beco sem saída, por isso um saber mundano. A secularização de nossos dias criou a ideologia equivocada de que as ciências seriam um estatuto privilegiado do mundo moderno, onde a separação entre ciência e religião marcaria um passo de conquista, liberdade e progresso, quando de fato, as ciências estão presentes nos povos tradicionais, mas nestes os nexos entre as ciências e o Transcendente são imprescindíveis, fazendo de suas ciências sagradas, enquanto as ciências do mundo moderno, por esta desconexão, as tornam mundanas e opacas à compreensão, e limitando-as a serem apenas ferramentas de produzir coisas e fenômenos, o dominante motor desta civilização
do materialismo, hedonismo e consumismo.
(l2)- Rock, J.F.- “The Na-khi Nâga Cult and related ceremonies”, Vol.II, págs. 386, Roma, l952 (citado por Mircea Eliade, Mito e Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, l972, p.30).
(13)- Em relação ao mundo criado, “trevas” também tem o sentido inferior de Caos, do qual será extraído a mundo existencial. Por aqui já podemos ir percebendo como seria difícil aproximar-se mentalmente do mundo indígena sem a familiaridade com o exercício da percepção espiritual que fundamenta a vida dos povos tradicionais e que constitui realmente o “centro” do mundo e da possibilidade de sua compreensão. O que está “fora deste centro” real é “excêntrico” (cujo sentido etimológico é “fora do centro”). Por isso, não é o mundo indígena que é “exótico ou excêntrico”, mas de fato é esta civilização moderna que está “fora de centro”, coberta de trevas (agora no sentido inferior desta palavra, como “obscura e caótica”), sem saber quem é, quais seus fundamentos e perspectiva, ao sabor da impermanência da existência, como diriam os budistas.
(l4)- Guénon, René – Melanges. France: Gallimard, l976, p. l2
Excelentes reflexões!!! Um bálsamo de sabedoria em meio ao festival de bestialidade da sociedade dita moderna. Grato Arthur