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Educação, Espiritualidade e Humanidade

UBUNTU

Contribuições budistas para a realidade brasileira

(Inspirado no texto
“O desenvolvimento do Buddhismo no Brasil por meio da Educação”,
publicado no 1º. Seminário da Faculdade Livre Budista do Templo Zu Lai
Caderno de Artigos, Cotia, SP, 04/10/2003, pags. 59-71)

Como podemos compreender os vínculos entre Educação, espiritualidade e humanidade, abrindo perspectivas sobre a contribuição dos ensinamentos budistas para a atual realidade brasileira?

Comecemos examinando qual o coração dos ensinamentos budistas para a humanidade. Buddha disse que Ele só ensina duas coisas: a existência do sofrimento e a erradicação do sofrimento (Samyutta-Nikâya, xxii, 86). O instrumento que aqui estamos escolhendo para arrefecer o sofrimento é a Educação. O que seria uma Educação orientada por uma perspectiva budista?

Desde já, convém salientar que perspectiva budista deve ser refletida a partir de um olhar que não se enclausure num rótulo “religioso”, mas à luz de um rigor profundamente científico, passível, portanto, de ser teòricamente sustentável e verificável nos dados de experienciação na realidade.

Para refletirmos sobre o que seria a contribuição budista para humanidade em geral, e mais especificamente para a realidade educacional brasileira, temos, antes de tudo, de compreender as tendências formadoras do Brasil, em uma perspectiva de sua história e de sua realidade atual. Pois se a contribuição budista para uma Educação no Brasil significa buscar arrefecer seus sofrimentos, e, ao mesmo tempo, cultivar as qualidades positivas, então devemos nos perguntar: Quais são os sofrimentos do Brasil? Quais são suas potencialidades positivas? Cada lugar e tempo têm os sofrimentos que se enraízam em causas universais conjugadas com causas específicas. O Brasil tem seus condicionantes saudáveis e não-saudáveis próprios, precisamos enxergá-los. E o que seriam os condicionantes saudáveis e não-saudáveis próprios do Brasil? O tema é muito vasto, tentarei focalizar alguns ângulos mais importantes.

Para compreendermos os sofrimentos de que padece o Brasil, convém começarmos olhando para a formação histórico-espiritual do Brasil, pois nossa realidade atual é fruto das ações (karma) do passado e do presente. Das várias linhas que constituíram este país, destaco as três grandes correntes: o mundo europeu a partir do séc. XIV-XV; as correntes africanas que para aqui foram trazidas através principalmente da escravidão; e a presença milenar das tradições indígenas. A partir dos finais do séc.XIX / início do séc.XX, uma variedade de migrantes veio participar da formação brasileira, dando-lhe este caráter de país multiétnico. Mas vamos nos concentrar inicialmente nas três grandes correntes, procurando entender suas principais tendências.

É sabido que a chegada do mundo europeu nestas terras das Américas, assim como também na África e Ásia, a partir do séc.XV-XVI, teve como objetivo maior a expansão de uma forma de produção conhecida como mercantilismo, que após certo tempo de acumulação de riquezas provindas das colônias, permitiria a emergência do industrialismo, cujas formas mais complexas vemos em nossos dias de globalização, tecnologias e consumismo. A colonização do Brasil faz parte desse panorama.

Este novo modo de vida da Europa pós-medieval foi sendo construído em cima da progressiva destruição do seu antigo modo de vida feudal, antes voltado para a vida dos feudos, com suas aristocracias e servos, sua produção principalmente agrícola e artesanal, sendo todo seu edifício social orientado pelos valores da tradição cristã, com suas igrejas e monastérios. Neste processo de mudança, era preciso novas terras e novas riquezas.

Se olharmos do ponto de vista do Dhamma, podemos aí ver atuando o que Buddha chama de tanhã, a avidez, a ganância, o desejo da mente possessiva. Para que esta sede pudesse se expandir, era preciso conquistar as terras do além-mar europeu. Abre-se com isto uma nova e difícil fase da humanidade, em que uma visão materialista do mundo irá buscar se impor sobre todos os povos.

Não é que esta sede material fosse algo novo, está dentro da mente desde os primórdios, é um dos aspectos da natureza do samsara, mas ainda não tinha alcançado este grau de imposição a ponto de se tornar a grande lei a partir de então, rompendo fronteiras e abalando as culturas humanas tradicionais das Américas, África e Ásia. Olhando a história da colonização, podemos ver o quanto de sofrimento foi criado, gerando uma herança kármica nociva, cujos efeitos sentimos até hoje.

Nesse processo de colonização, voltando nosso foco para o Brasil em específico, o que vemos? Ocupação e extermínio de muitos povos indígenas (calcula-se que havia de 5 a 10 milhões de nativos, hoje são por volta de 900 mil), importação de africanos que vieram escravizados para o duro trabalho nas grandes plantações de açúcar, expedições sedentas de ouro e pedras preciosas, toda riqueza dirigida às metrópoles, muitas guerras e lutas por independência, república … até chegarmos aos nossos dias, em um quadro mundial de globalização e grandes desafios. Criou-se essa tendência de ver o Brasil como uma terra de lucros fáceis, a qualquer custo, alheia ao sofrimento dos outros. E o Cristianismo, que papel desempenhou?

Se, de um lado, muito da cultura saudável européia foi para cá trazida graças ao patrimônio cultural e espiritual que o Cristianismo europeu desenvolvera desde há muitos séculos, e isto constitui um bom karma (tendências-frutos de ações saudáveis e não-saudáveis) passadas e presentes, por outro lado este patrimônio foi difundido às custas de forte imposição sobre os escravos africanos e os povos indígenas que aqui viviam. Em meu livro Buddhismo e Christianismo (Shaker, 1997, p.76) procuro chamar atenção para um aspecto que alguns poucos estudiosos apontaram, o de que a expansão do Ocidente pós-medieval teve uma forte tendência de dessacralização do mundo, no sentido de obscurecer as leis espirituais, tornando o desejo material uma força devastadora.

O Cristianismo, que tem um de seus maiores princípios no “amar ao próximo como a si mesmo”, na vida da modéstia, generosidade e compaixão, parece ter se esquecido disso durante toda a colonização, pois caso contrário, como entender a brutalidade dos colonizadores que se diziam cristãos? O Dharma do Christo foi envolvido em uma prática ambígua, com muitas contradições. A prática dos colonizadores, que se diziam cristãos, de cristã tinha pouco, e trouxe fortes sofrimentos inclusive aos próprios cristãos, até hoje.

Como instrutor de meditação da Casa de Dharma, tenho procurado lidar com essa questão, pois muitos dos que vêm até nós chegam com confusões e sofrimentos em suas mentes como consequência dessa herança psíquica mal elaborada. E assim, decepcionados com essa experiência anterior, buscam no Budismo uma nova alternativa espiritual, o que em si tem um aspecto saudável, mas que se não for bem entendido, pode mantê-los estagnados num ponto em que não serão nem budistas nem cristãos, pois cada uma dessas tradições tem sua forma própria de encaminhamento para a realização espiritual.

Penso que se o Budismo quer lidar com essa situação com profundidade, e não simplesmente buscar se aproveitar dessa confusão mental a favor de uma expansão de seus participantes, precisamos compreender melhor essa tendência espiritual conflitante que envolveu o Cristianismo durante esses cinco séculos da formação do Brasil, e trabalhar com isso de forma correta, pelo bem da Verdade e da libertação humana, abrindo os horizontes para uma mente sem avidez nem ignorância. Lembro que o Budismo nunca precisou da força para se expandir, e nunca o fez pelo proselitismo tirando praticantes de outras tradições, mas sempre pelo caminho ensinado pelo Buddha, do “venha e veja”.

Podemos usar a sabedoria do Dharma não para julgar ou criticar, mas para ajudar os cristãos a verem que os ensinamentos de Buddha e Christo têm afinidades profundas, em suas verdades sobre o amor, a compaixão e a natureza passageira e ilusória deste mundo samsárico. Tanto budistas como cristãos, e podemos estender isto a todas as tradições espirituais legítimas, devemos colocar em prática esses ensinamentos, e agirmos em nosso corpo, fala, e mente afinados com a perspectiva de nos tornarmos verdadeiramente humanos, educando a nossa mente a ver no dia-a-dia as tendências nocivas da cobiça, ódio e ignorância nos tempos atuais: a sede pela riqueza conseguida sobre o sofrimento dos outros, a ganância pelo poder que pisa sobre os mais fracos, a conivência com a corrupção, a indiferença pela dificuldade dos outros, a violência física e mental, as drogas, as falhas na educação escolar que em nenhum momento mostra aos estudantes o caráter impermanente e insatisfatório dessa vida samsárica, como se o futuro e a vida

fôssem apenas um grande supermercado de coisas prazerosas sem fim, esta fantasia criada pelo consumismo de que a felicidade e o progresso são sinônimos de riqueza material, e que o conhecimento se restringe apenas a dominar técnicas para produzir mais coisas.

Tecnologias e produtos são úteis para diminuir nosso desconforto diante da dureza da vida, mas desde que usadas para apoiar nossa prática espiritual, e não para tentar nos iludir sobre a verdade da impermanência e insatisfatoriedade que Buddha ensinou sobre o mundo condicionado samsárico. Não significa que devamos cair no outro extremo, o de querer que o Brasil deva ser sempre um país materialmente pobre, e que a pobreza material seria sinônimo de espiritualidade. É claro que riqueza material pode seduzir e desviar a mente do caminho da realização espiritual, mas a mortificação não conduz à libertação, como bem demonstrou o Buddha com sua experiência própria. É um grande desafio e esforço dos países do hemisfério sul o de trabalharem pelo bem estar de seus cidadãos, tarefa árdua nestes tempos de grandes poderes e ganâncias mundiais. Lembremos que o Brasil é um país de muita riqueza, porém a participação mais inclusiva das riquezas para o bem de todos é sempre um dos grandes desafios. A equanimidade ensinada

pelo Buddha deve fazer parte da direção educacional para o arrefecimento do sofrimento deste país.

Compreendendo os karmas, podemos transformá-los. A segunda grande corrente a ser compreendida são as tradições africanas que vieram ao Brasil no período da escravidão. Os documentos e arquivos sobre o tráfico dos escravos foram queimados, e sendo proibida nos recenseamentos oficiais a discriminação segundo a cor da pele, é difícil se ter dados exatos sobre o número da população de ascendência africana no Brasil, mas calcula-se a grosso modo que 35% a 40% da população brasileira são de origem africana (Elbein dos Santos, 1977, p.27. A autora se baseou em pesquisas de 1967, do Gabinete de Estudos Regionais e de Geomorfologia da Universidade da Bahia

Duas grandes linhas africanas constituíram a presença africana no Brasil. No período da conquista e desbravamento do Brasil, temos os Bantu, do Congo e Angola, espalhados em pequenos grupos nas plantações e nos centros litorâneos do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo, em uma época de comunicações difíceis. A partir da segunda metade do séc. XVIII, quando o comércio escravista se deslocou parcialmente para o golfo do Benin, temos a presença sudanesa, com os Jeje do Daomé, os Hausa e os Nagô (Yorubá). Concentraram-se nas zonas urbanas em pleno apogeu, como Salvador e Recife. Tinham contato permanente com suas terras de origem, pelo comércio intenso entre a Bahia e a Costa (Elbein dos Santos, 1977, p.31).

Cada uma dessas correntes africanas trouxe sua cultura e sua religião. Também é sabido que suas tradições foram fortemente reprimidas, obrigando-as a se esconderem sob o panteão dos santos católicos para que pudessem sobreviver. Existe até os dias de hoje ainda preconceitos raciais, embora muitas leis têm sido promulgadas para combater as discriminações raciais. Também ainda há um grande desconhecimento das formas tradicionais religiosas das culturas africanas no Brasil. Por outro lado, a resistência dessas tradições se estende até hoje em muitos campos, não só o da sua espiritualidade, mas também em outras áreas culturais em que marcaram a formação brasileira, por exemplo, com suas artes como a música, a dança, a culinária. Penso que é importante aos budistas examinar como podem se relacionar de forma correta com essas tradições.

A primeira exigência seria conhecê-las, a partir da sua própria perspectiva. Deveríamos também levar em conta a experiência da presença do Budismo atualmente em países africanos, procurando-se saber como se está lidando com essa relação, de modo a evitar o equívoco anterior de tentar se impor ou ignorar essas raízes, compreendendo e buscando ao mesmo tempo um espaço próprio e um espaço para o diálogo espiritual. Observemos que nos centros budistas ainda há poucos participantes de origem negra, o que talvez decorra do fato de que o Budismo ainda seja uma via espiritual acessível apenas para as camadas intelectualizadas da população brasileira, enquanto a maioria afrodescendente ainda se vê confinada nos limites das camadas sociais mais baixas. Como lidar com isso é um desafio.

População residente no Brasil, por raça/cor da pele em 2010
raça/cor da pele nº absoluto proporção
branca 91.051.646 47,73
parda 82.277.333 43,13
preta 14.517.961 7,61
amarela 2.084.288 1,09
indígena 817.963 0,44
total 190.749.191 100,00

Fonte: Censo 2010 | IBGE.
https://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/quantos-sao/o-censo-2010-e-os-povos-indigenas

População residente, por cor ou raça %

Branca 42,7% – Preta 9,4% – Parda 46,8% Amarela, Indígena 1.1%

Fonte IBGE Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios Contínua 2012-2019

A terceira grande corrente são as tradições indígenas. “Segundo o Censo IBGE 2010, os mais de 305 povos indígenas somam 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país (https://pib.socioambiental.org/pt/”). Embora elas sejam numèricamente menores e sua influência sobre as culturas não-indígenas da realidade brasileira seja restrita, não significa que seriam por isso menos importantes. (Segundo os primeiros resultados do Censo IBGE 2022, a população indígena atual é de 1.693.535 pessoas, o que corresponde a 0,83% do total do Brasil. No Censo de 2010, os mais de 305 povos indígenas somavam 896.917 pessoas. https://pib.socioambiental.org/pt/Quantos_s%C3%A3o%3F)

Em primeiro lugar, penso que todos temos o compromisso de apoiar o resgate dos direitos dessas culturas nativas que foram, e continuam sendo duramente atingidas pela presença de uma sociedade que desde os tempos da colonização vem trazendo grandes sofrimentos para esses povos. Há muitos anos venho como antropólogo trabalhando junto a essas culturas. Percebi, através da visão correta que o Dharma tem aberto em minha mente, que existe um Dharma das tradições indígenas. Escrevi um ensaio (acessível em meu blog), sobre A Espiritualidade indígena e os 500 anos e tantos anos da ambição moderna, na forma de uma carta dirigida aos amigos indígenas, em que procuro mostrar que a violência sobre eles faz parte de uma tendência materialista que afeta há um certo tempo todos os povos.

Procuro também abrir com eles um diálogo sobre sua espiritualidade ameaçada por esses nossos tempos, e a importância de encontrarmos formas amistosas de defender uma visão espiritual do mundo. Trabalhando com eles, venho entendendo que a sabedoria do Dharma é muito mais ampla e profunda do que muitas vezes nós mesmos, os budistas, percebemos. Lembro as palavras do Ven. Bhikkhu Bodhi, nos mostrando que o Buddha de fato não inventa um novo Dharma, mas que seu papel é o de “redescobrir o Dharma, o princípio último da verdade, e de oferecer uma herança espiritual de modo a preservar o ensinamento para as futuras gerações” (Bhikkhu Bodhi, 2003, p.7).

Penso que os budistas deveriam buscar se relacionar também com as tradições indígenas. Precisamos fazer intercâmbios com elas, sem tentar impor a visão espiritual budista sobre essas culturas, e, para isso, temos de começar pela compreensão aprofundada sobre como a espiritualidade está estruturada nas tradições indígenas, ou seja, como o Dharma se apresenta na religiosidade indígena. E, a partir daí, encontrarmos as pontes dhármicas corretas, em que sejam respeitadas as diferenças entre o caminho espiritual budista e os caminhos indígenas, ao mesmo tempo em que abrimos nossa mente para conhecer aonde estão as possíveis afinidades para além da forma dessas tradições. Lembro as palavras contidas na biografia do Ven. Mestre Hsing Yün sobre a tolerância para com as tradições milenares, em que afirma que “as crenças, como a aprendizagem, variam em profundidade e sofisticação. Se estiverem comprometidas com o bem, Hsing Yün acredita que devam todas ser valorizadas” (Chi-Ying, 2002, p.339).

Todo meu trabalho de pesquisa, que culminou na minha tese de doutorado, está focado nesse grande esforço: por um lado, trabalhando anos a fio junto aos velhos indígenas e seus tradutores, transcrevemos detalhadamente suas histórias dos tempos da criação do seu mundo, procurando entendê-las a partir da sua perspectiva, com seus próprios comentários e reflexões. Por outro, trazendo para o diálogo e o conhecimento deles a sabedoria de outros povos milenares, indígenas, asiáticos e africanos, visando preservar na forma de um livro esse conhecimento, que sirva tanto para os “homens brancos” entenderem um pouco melhor essas culturas e com isso respeitá-las, como também para as novas gerações indígenas, pois os velhos percebem que pouco a pouco esse conhecimento antigo e rico podem ir se perdendo, se houver um desinteresse dos jovens indígenas, que podem ser fascinados pela sedução do mundo moderno.

Tendo esse panorama histórico-social como pano de fundo da realidade brasileira, como a perspectiva budista poderia contribui para o campo da Educação, que não necessàriamente tenha de passar por um estereótipo de uma “intromissão proselitista religiosa no domínio da Educação laica”?

A pergunta que precede essa reflexão seria: o que entendemos por Educação? Se olharmos a raiz latina da palavra educar, veremos que provém do prefixo e (“para fora”) e ducere (“conduzir”). Educar significa trazer para fora, para a luz, algo latente. Também tem o sentido de “erguer, levantar”. Algo análogo ao conceito grego de Paidéia, proveniente da raiz pais, paidós, “menino, filho”: educar seria “domesticar, domar, ensinar”, como um pai que toma a mente como seu filho, e o ensina a lapidá-la. E o quê nós humanos temos latente, que caberia à Educação expressar e lapidar?

A compreensão das Verdades sobre a condição humana (o Dhamma na língua páli, Dharma na língua sânscrita) realizadas pelo Buddha é aqui fundamental para investigarmos como delas decorrem orientações para uma prática da Educação. Para isso, destaco, por ora, das três jóias budistas, o Dhamma (em páli, Dharma em sânscrito), termo de difícil tradução. Provém da raiz sânscrita dhri, que significa “carregar, suportar, sustentar, manter” (Guénon, 1979, p.70). Ou seja, é a Constituição (ou Natureza de algo), a Norma, Lei (jus), Doutrina, Justiça, Retidão, Qualidade, Coisa, Objeto da Mente, Fenômeno (…) O Dhamma, como a lei liberadora descoberta e proclamada pelo Buddha, está posta nas Quatro Nobres Verdades (Nyanatiloka, 1987, p.47). Quais são elas?

A Nobre Verdade sobre a insatisfatoriedade e sofrimento da existência condicionada; a Nobre Verdade sobre a causa do sofrimento; a Nobre Verdade sobre a cessação do sofrimento e a Nobre Verdade sobre o método de superação do sofrimento. Segundo o monge budista Buddhadasa Bhikkhu, o Dhamma é “o segredo da natureza que precisa ser entendido de modo a desenvolvermos a vida em seu mais elevado benefício possível” (Buddhadasa, 1988, p.3). O Dhamma da vida tem quatro sentidos: a natureza em si; a lei da natureza; o dever que deve ser cumprido de acordo com aquela lei da natureza e os frutos ou benefícios que decorrem do cumprimento daquele dever (Buddhadasa, 1988, p.4).

Os Buddhas nascem no estado humano, e nos ensinam que o nascimento nesse estado é raro e importantíssimo, porque é exatamente nesse estado humano que podemos compreender com total clareza as Quatro Nobres Verdades sobre os extremos igualmente ilusórios do sofrimento e do prazer. É essa compreensão que nos permite libertarmos do samsara (ciclos de renascimentos) e realizarmos o estado da mente totalmente livre, incondicionada, Nibbana (Nirvana, em sânscrito). Já os devas (seres celestiais) estão presos na embriaguez dos prazeres celestes conquistados por seus méritos anteriores, mas impermanentes, e os seres infernais estão presos a um grande sofrimento para cuja libertação devem renascer no estado humano. Esta centralidade do estado humano no samsara é exatamente o significado profundo do que seja a humanidade, nossa humanidade.

Todo meu trabalho na Antropologia é explicitar exatamente essa significação da condição humana. Em meu livro A travessia buddhista da vida e da morte, proponho alguns fundamentos para uma Introdução a uma Antropologia Espiritual. Através de uma ampla pesquisa sobre as doutrinas de muitos povos da humanidade, procuro mostrar que em todas está presente essa visão da centralidade do estado humano no mundo. Esquecer ou ignorar isto, e ainda há muita ignorância sobre isto em nossos cursos universitários, é lançar a humanidade e toda a Natureza no caos, transformando o homem em uma espécie de animal consumidor de uma fome que não tem fim. E como o homem tem forte poder sobre a Natureza, o que assistimos nessa expansão desenfreada dos desejos dos sentidos é uma crise ecológica que ameaça o planeta e todos os seres.

Em virtude do lugar importante que nosso estado humano tem nesse mundo, temos grande responsabilidade e deveres para com a preservação não só da nossa espécie como também de todos os outros seres. Compreender e assumir esse Dhamma significa educar-se contìnuamente. E educar é trazer para fora e lapidar o que temos latente. Mas estas potencialidades têm duas faces opostas:

De um lado, nossas tendências dhármicas virtuosas como a capacidade de conhecer as verdades, desde as relativas até a Verdade Última nirvânica, incluindo nossas qualidades inatas para o desenvolvimento dos quatro estados sublimes (brahma-vihara) incentivados pelo Buddha: a amizade amorosa (metta), a compaixão (karuna), a alegria simpatética (altruísta) para com a realização dos outros (mudita) e a equanimidade (upekkha).

De outro lado, temos nossas tendências adhármicas, as heranças kármicas negativas, as impurezas da ganância, do ódio e da delusão, todas elas frutos da nossa ignorância sobre o que seja o samsara. Esse é o duplo sentido da palavra maya: arte e ilusão. Como seres humanos, temos a capacidade de construir com arte nosso caminho da sabedoria (pañña) que nos conduz à libertação, ou nos enroscarmos nas teias da ilusão samsárica. Desenvolver uma perspectiva de Educação apoiada em uma construção budista significa conhecer, por um lado onde estão os sofrimentos tanto sociais quanto aqueles que estão dentro de nossas mentes, procurando trabalhar para nos livrarmos deles através de práticas curativas, e, por outro, cultivarmos nossas qualidades virtuosas e saudáveis.

Um dos instrumentos importantes desse processo curativo-preventivo-educativo é a prática de meditação, para o desenvolvimento da concentração, plena atenção e sabedoria, que permitem monitorar e trabalhar sobre nossas tendências não-saudáveis. Uma série de pesquisas científicas atuais na área médica e psicológica, interligadas às chamadas Neurociências, tem evidenciado as transformações e benefícios da meditação para a saúde mental e corporal.

A Educação, nessa perspectiva, aponta para um significado mais profundo da existência, no qual os seres humanos têm a valiosa oportunidade de transcender seu sofrimento e aprisionamento, indo para uma realização da Plenitude. Se perdermos essa dimensão maior, nos tornamos prisioneiros de um domínio puramente contingente e transitório da realidade, e com isso a cobiça e suas consequências dolorosas, como o ódio, o egoísmo, as disputas, a ansiedade, a depressão, a destruição da solidariedade e da ecologia dominam a mente humana. Quando perdemos essa perspectiva oceânica da realidade, e, portanto, da própria natureza mais profunda de nossa mente, e nos reduzimos a uma visão de peixinhos presos num aquário fechado, a vida se reduz a uma guerra pela sobrevivência, contra tudo e contra todos.

E examinando de modo mais cuidadoso, veremos que lamentàvelmente a história de construção das ciências modernas se fez a partir de uma redução dessa amplidão do Real, criando uma exagerada separação entre o que se chamou de “ciência” e “religião”. É como se fosse atribuído ao pensamento “científico” o lugar da verdade estatìsticamente comprovada, ficando para a “religião” o domínio de um hipotético transcendente, não passível de ser referendado por fatos, estatísticas e provas materiais. Como se a ciência cuidasse das “verdades objetivas” e quantitativas da Terra, e a religião ficasse com as crenças “subjetivas” de um “Céu hipotético”. Entretanto, pesquisando as culturas humanas, podemos observar um outro ponto de vista muito diferente. É muito esperançoso ver que, atualmente, muitos cientistas, das várias áreas de pesquisa e prática, têm aberto um horizonte mais amplo sobre as visões científicas interconectadas com as dimensões espirituais da realidade.

Independente das teorias limitantes que a mente humana possa criar sobre a vida, encontramos o testemunho daqueles que alcançaram a realização espiritual da plenitude a indicação de que nossa realidade humana faz parte de um mundo condicionado, aquilo que no Budismo se chama de sankhata, que engloba todos os fenômenos da existência, ou seja, o samsara. Mas o mundo samsárico não tem fundamento em si mesmo, ou seja, não tem em si uma substância inerente, não existe de modo autônomo, autosuficiente. O mundo condicionado só ganha significado quando visto à luz do Incondicionado, o Nirvana, o suprafenomênico, asankhata.

Trata-se, portanto, de uma visão da Realidade como uma Totalidade, e isto é a base do que deveria ser um conhecimento científico verdadeiro. Mas, independentemente do fato de aceitarmos ou não sobre a verdade do transcendente, o fato é que mesmo se circunscrevermos nosso campo de entendimento de nossa realidade a esta única vida, esta poderá ser vivida com maior qualidade de relaxamento, afetuosidade e serenidade quando aprendemos a treinar a nossa mente no cultivo de nossas qualidades virtuosas e saudáveis e superação de nossas tendências não-saudáveis, monitorando nossos estados corporais e mentais através da prática da Meditação, da Ética e da Sabedoria.

É nessa perspectiva que a Educação profunda atuaria, pois é a ignorância sobre a natureza da realidade condicionada, na qual nós humanos estamos presos, que constitui a raiz de todos os sofrimentos. Educar-se é trabalhar metòdicamente, unificando a educação formal e não-formal, sobre essa ignorância arraigada na mente humana, libertando-a em suas tendências saudáveis, para seu sonho de plenitude. A liberdade das águias.

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