Se o budismo pretende abordar a crise ecológica,
deve clarificar sua mensagem essencial.
David Loy (2015)
Deixe-me começar enfatizando o que a maioria de nós já sabe sobre as mudanças climáticas. Primeiro, é a maior ameaça à civilização humana de todos os tempos, até onde podemos dizer. Segundo, não é uma ameaça externa, mas algo que estamos fazendo a nós mesmos. E terceiro, nossa resposta coletiva permanece, se não completamente negligenciada, muito longe de ser adequada.
No entanto, o colapso climático é apenas parte de uma crise ecológica muito maior. Não podemos culpar a degradação da natureza simplesmente pelos recentes aumentos de carbono na atmosfera. Se quisermos evitar o desastre climático e nossa própria extinção potencial, precisamos encarar nossa degradação de longa data do mundo natural em todas as suas formas. A humanidade tem explorado o mundo natural durante a maior parte de sua existência. Hoje, no entanto, a situação atual tornou-se uma ameaça à nossa própria sobrevivência.
Edward Osborne Wilson, o renomado biólogo de Harvard, prevê que até o final deste século cerca de metade de todas as espécies de vegetais e animais da Terra se tornarão extintas ou tão enfraquecidas que desaparecerão logo depois. Cientistas nos dizem que houve pelo menos cinco outros eventos de extinção na história da Terra, mas este é o mais rápido de todos e o único causado pela atividade de uma espécie em particular: a nossa.
Toda a crise ecológica atesta para o fato de que somos uma civilização globalizada que se perdeu. A crise da natureza é, no fundo, uma crise da civilização. A mudança para fontes renováveis de energia natural não resolverá, por si só, nossa preocupação coletiva com o crescimento econômico sem fim — e a produção e o consumismo muitas vezes sem sentido que isso acarreta — que é incompatível com os ecossistemas finitos da Terra. Muitas coisas poderiam ser ditas a partir de uma perspectiva budista sobre porque essa fixação no crescimento não pode fornecer a satisfação que buscamos; mas vejamos um exemplo particularmente revelador: o que a Mitsubishi está fazendo com o atum-rabilho.
Os japoneses adoram sashimi, e sua variedade favorita é o atum-rabilho. Infelizmente, o atum-rabilho é também um dos peixes mais ameaçados do mundo. Mas o conglomerado Mitsubishi, um dos maiores impérios empresariais do mundo, surgiu com uma resposta engenhosa: monopolizou quase metade do mercado mundial comprando o máximo de atum-rabilho que pode, à medida que a população mundial despenca em direção à extinção. O atum é importado e congelado a -60°C nos enormes freezers da Mitsubishi, pois atingirá preços astronômicos se, como previsto, o atum-rabilho do Atlântico logo se tornar comercialmente extinto, à medida que as frotas de atum tentam satisfazer uma demanda insaciável — principalmente a da Mitsubishi.
De um ponto de vista ecológico, essa resposta é imoral, obscena. De um ponto de vista econômico restrito, no entanto, é bastante lógico, até mesmo inteligente, porque quanto menos atum-rabilho no oceano, mais valioso o estoque congelado da Mitsubishi se torna. E é da natureza da competição econômica que corporações como a Mitsubishi são às vezes encorajadas ou “forçadas” a fazer coisas assim: se você não fizer, outra pessoa provàvelmente fará. É assim que a “tragédia das provisões” se desenrola em escala global.
O exemplo acima é um dos muitos que apontam para uma perversidade fundamental incorporada nos sistemas econômicos motivados pelo lucro, que tendem a desvalorizar o mundo natural como um meio, subordinado ao objetivo de expansão da economia, a fim de maximizar os lucros. Esse foco frequentemente ofusca nossa apreciação do mundo natural, o que significa que acabamos destruindo a verdadeira riqueza — uma biosfera florescente com florestas e solo superficial saudáveis, oceanos cheios de vida marinha e assim por diante — para aumentar os números nas contas bancárias. À medida que a enorme lacuna entre ricos e pobres continua a aumentar em todo o mundo, a maior parte desse aumento vai para um número muito pequeno de contas.
Essa lógica perversa garante que, mais cedo ou mais tarde, nosso foco coletivo no crescimento sem fim — na produção e no consumo cada vez maiores, o que requer uma exploração cada vez maior dos nossos recursos naturais — deve inevitàvelmente esbarrar nos limites do planeta, e acontece que isso está acontecendo agora. Hoje, não é suficiente para nós meditar e buscar nosso próprio despertar pessoal; também precisamos contemplar o que essa situação significa e como responder.
Muitos ensinamentos budistas são relevantes aqui, especialmente sua ênfase na interdependência e não-dualidade. Nós nos consideramos e os outros como entidades separadas, buscando nosso próprio bem-estar às custas do bem-estar deles, em um modo forma que a crise ecológica repudia. Como habitantes da Terra, estamos todos juntos nisso. Quando a China queima carvão, essa poluição não fica apenas acima dos céus chineses, nem a radioatividade nuclear de Fukushima fica apenas nas águas costeiras japonesas. O mesmo se aplica, geralmente, à humanidade e ao resto do mundo natural: quando os ecossistemas da Terra adoecem, nós adoecemos. Em suma, a crise ecológica também é uma crise espiritual: somos desafiados a perceber nossa interdependência — nosso “eu” maior — ou então… O que a Terra parece estar nos dizendo é Acorde ou saia do caminho.
Nessa perspectiva, os problemas que hoje nos desafiam são ainda mais intimidadores. Diante de sistemas políticos e econômicos aparentemente intratáveis, poderíamos facilmente nos desesperar. Por onde começar? Aqueles que controlam nossa economia e sistemas políticos atuais também são os que mais se beneficiam deles (no sentido estrito), então tendem a ser pouco inclinados a fazer as mudanças sistêmicas necessárias — e muitas vezes são incapazes de fazê-lo.
Podemos ver que a mudança institucional só pode vir das bases, e há sinais crescentes de que mais e mais pessoas estão cansadas de esperar que as elites econômicas e políticas tomem medidas. Como o autor e ambientalista Paul Hawken aponta em seu livro Blessed Unrest, de 2007, um grande número de grandes e pequenas organizações estão trabalhando pela paz, justiça social e sustentabilidade — talvez dois milhões, ele estima agora. Isso é algo que nunca aconteceu antes: é como se as organizações tivessem “brotado” da terra para atuar como seu sistema imunológico, respondendo ao câncer que agora ameaça nossa sobrevivência.
Mas embora a resposta necessária tenha começado, é fácil ignorar o que está acontecendo, porque a grande mídia não está interessada em divulgar ou encorajar essa transformação. Seis megacorporações agora controlam 90% da mídia nos Estados Unidos, e elas lucram não através da informação, mas com publicidade. Sua perspectiva inevitavelmente tende a normalizar o consumismo, incluindo o sistema político que o auxilia e o incentiva. Sem surpresa, elas promovem o “consumismo verde” como a solução para a crise ecológica — mudanças pessoais no estilo de vida, como comprar carros híbridos ou elétricos, instalar painéis solares, a comida local e assim por diante. No entanto, como Bill McKibben apontou, mesmo que muitos de nós façamos tudo o que pudermos para reduzir nossas pegadas de carbono individuais, “a trajetória do nosso horror climático permanece praticamente a mesma”. Mas se o mesmo número de nós trabalhar ao máximo para mudar o sistema, ele continua, “isso é suficiente”.
A crise ecológica, e a ampla situação civilizacional da qual ela é um sintoma, é uma crise também para a tradição Budista, que precisa esclarecer sua mensagem essencial, a fim de realizar seu potencial libertador no mundo moderno.
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Um dos desenvolvimentos importantes no Budismo contemporâneo tem sido o Budismo socialmente engajado e o serviço — dharma na prisão, trabalho em hospitais psiquiátricos, ajudar os sem-teto e coisas do tipo — é agora amplamente aceito como uma parte importante do caminho Budista. Os Budistas se tornaram muito melhores em tirar do rio pessoas se afogando, mas — e aqui está o problema — não somos melhores em perguntar por que há tantas pessoas se afogando, ou o que as está empurrando rio acima.
Lembro-me da famosa citação de Dom Hélder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, chamam-me santo. Quando pergunto porque os pobres não têm comida, chamam-me comunista.” Existe uma versão Budista? Quando os Budistas ajudam os sem-teto e os presos, são chamados bodhisattvas; mas quando os Budistas perguntam por que há tantos desabrigados, tantos apodrecendo na prisão, outros Budistas os chamam de esquerdistas ou radicais. “Isso não tem nada a ver com o Budismo”, dizem os outros.
Ao mesmo tempo em que a organização budista para a justiça social e econômica fracassou, o movimento mindfulness teve um sucesso incrível. Mindfulness oferece uma prática individualista que pode se encaixar bem em uma cultura corporativa de consumo focada em eficiência e produtividade. Embora tais práticas possam ser muito benéficas, elas também podem desencorajar a reflexão crítica sobre as causas institucionais do sofrimento coletivo, ou dukkha social. Como Bhikkhu Bodhi alertou: “Na ausência de uma crítica social afiada, as práticas Budistas poderiam fàcilmente ser usadas para justificar e estabilizar o status quo, tornando-se um reforço do capitalismo de consumo.”
Recentemente, li uma passagem em Everybody’s Story: Wising Up to the Epic of Evolution, de Loyal Rue, que me fez parar, porque cristaliza muito bem um desconforto com o Budismo (ou alguns tipos de Budismo) que me incomoda há algum tempo. Rue escreve que religiões como o Cristianismo e o Budismo continuarão em declínio, pois fica cada vez mais evidente que elas não conseguem lidar com os grandes desafios que enfrentamos hoje. Ele cita dois problemas básicos: dualismo cosmológico e salvação individual, ambos os quais “têm encorajado uma atitude de indiferença em relação à integridade dos sistemas naturais e sociais”.
O dualismo cosmológico é obviamente um aspecto importante do cristianismo, que distingue Deus em seu céu, do mundo que ele criou. Mas o Budismo também dualiza na medida em que este mundo do samsara é distinguido do nirvana. Em ambas as tradições, o contraste entre os dois mundos inevitàvelmente envolve alguma desvalorização do inferior: por isso somos informados de que este reino do samsara é um lugar de sofrimento, desejo e ilusão. E em ambos os casos, o objetivo final é a salvação individual, que envolve transcender este mundo inferior fazendo o que é necessário para se habilitar para o superior, seja a eternidade no céu com Deus ou atingir o nirvana.
Pode-se apontar aspectos da tradição budista que não apoiam o dualismo cosmológico, especialmente a famosa declaração de Nagarjuna, o influente filósofo Budista e fundador da escola Madhyamaka, de que “não há a menor diferença entre nirvana e samsara”. No entanto, essa afirmação deve ser equilibrada (por exemplo) com a doutrina Budista inicial de que o nirvana envolve o fim do renascimento físico, ou as escolas Mahayana da Terra Pura que contrastam este mundo com a Terra Pura de Amitabha.
Os budistas não visam o céu: queremos despertar. Mas para nós a salvação também é individual: sim, espero que você também se ilumine, mas, em última análise, meu maior bem-estar – minha iluminação – é distinto do seu. Ou assim nos ensinaram.
No entanto, quando se trata da natureza da iluminação, a maioria de nós não tem certeza no que acreditar. Como muitos Budistas Ocidentais modernos rejeitam a ideia de renascimento, não é surpreendente que uma alternativa deste mundo tenha se tornado popular no Ocidente, onde compreender o caminho Budista como um programa de desenvolvimento psicológico nos ajuda a lidar com problemas pessoais, especialmente nossa “mente de macaco” e emoções aflitivas. Isso levou a tipos inovadores de psicoterapia, bem como ao recente sucesso do movimento mindfulness, que representa o ápice dessa tendência no Budismo Ocidental. O Budismo está proporcionando novas perspectivas sobre a natureza do bem-estar psicológico e novas práticas que ajudam a promovê-lo — reduzindo a ganância, a má vontade e a ilusão aqui e agora, por exemplo, mas também organizando nossas vidas emocionais (o que não é um grande problema no Budismo Asiático) e trabalhando com traumas pessoais.
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Este desenvolvimento tem sido amplamente benéfico, mas tem uma sombra. O pressuposto comum do Budismo mais secular é que meu problema básico é a maneira como minha mente funciona, e a solução é mudar a maneira como minha mente funciona, para que eu possa desempenhar meus vários papéis (trabalho, família, amigos etc.) melhor, para que eu me encaixe melhor neste mundo. A maior parte do Budismo Asiático está preocupada em escapar deste mundo, já que o samsara não pode ser mudado, mas para grande parte do Budismo Ocidental contemporâneo, o caminho é todo sobre mudar a mim mesmo, porque eu sou o problema, não o mundo.
Assim, enquanto o Budismo Asiático tradicional enfatiza o fim do renascimento neste mundo insatisfatório, muito do Budismo Ocidental, incluindo a maior parte do movimento mindfulness, enfatiza a harmonização com este mundo. Isso significa que nenhum dos dois está muito preocupado com o engajamento social que funciona para mudar nosso mundo; ambos tomam o mundo (incluindo sua crise ecológica e injustiça social) como garantido e, nesse sentido, o aceitam como ele é.
Ambas abordagens encorajam uma maneira diferente de reagir à ecocrise: ignorá-la. Quando lemos ou pensamos sobre o que está acontecendo, como reagimos? Ficamos ansiosos, é claro, mas os Budistas sabem como lidar com a ansiedade: meditamos, e nosso desconforto sobre o que está acontecendo com a Terra vai embora — por um tempo, pelo menos. Nem preciso dizer que essa não é uma resposta adequada.
O ponto aqui é que a dificuldade Budista com o engajamento social e ecológico pode ser atribuída, em parte, à essa ambiguidade sobre a natureza do despertar. E essa ambivalência é um desafio que não podemos continuar evitando: realmente precisamos esclarecer qual é a mensagem essencial do Budismo.
Há uma forma alternativa de entender o caminho Budista, uma forma que não é redutível ao ou/ou de escapar deste mundo ou simplesmente se harmonizar com ele. O caminho da transformação pessoal é sobre desconstruir e reconstruir o eu/self, ou, mais precisamente, a relação entre o eu/self e esse mundo. Como meu senso de eu/self é uma construção psicossocial impermanente, sem realidade própria, ele é sempre inseguro, assombrado por dukkha [sofrimento] enquanto me sinto separado do mundo em que habito. Geralmente vivenciamos isso como uma sensação de falta: algo está errado comigo, algo está faltando, “Eu não sou bom o suficiente”. O consumismo nos encoraja a perceber o problema como uma falta pessoal: não tenho dinheiro suficiente, não sou famoso o suficiente, atraente o suficiente e assim por diante. A prática budista nos ajuda a acordar desse pesadelo.
Um engajamento social realmente importante de desconstrução e reconstrução do eu/self nos traz de volta ao compromisso social, incluindo o eco-dharma, a aplicação dos ensinamentos budistas à nossa situação ecológica. À medida que começamos a acordar e perceber que não estamos separados uns dos outros, nem desta Terra maravilhosa, também começamos a perceber que as maneiras como vivemos juntos e as maneiras como nos relacionamos com a Terra também precisam ser reconstruídas. Isso significa não apenas engajamento social como serviço, mas encontrar formas de abordar as estruturas econômicas e políticas problemáticas — as formas institucionalizadas de ganância, má vontade e ilusão — que estão profundamente implicadas na ecocrise. Dentro de tal noção de libertação, o caminho da transformação pessoal e o caminho da transformação social não são realmente separados um do outro. Devemos resgatar o conceito de despertar de um modelo terapêutico exclusivamente individualista e nos focar em como a libertação individual também requer transformação social. O engajamento no mundo é como nosso despertar pessoal floresce.
Acontece que a tradição budista fornece um arquétipo maravilhoso que pode nos ajudar a fazer isso: o bodhisattva. Superamos hábitos egocêntricos profundamente enraizados trabalhando com compaixão pela cura de nossas sociedades e pela cura da Terra. Isso é o que é necessário para que o caminho budista se torne verdadeiramente libertador no mundo moderno. Se nós, budistas, não podemos fazer isso, ou não queremos fazer, então o budismo pode não ser o que nosso mundo precisa agora mesmo.
David Loy é um professor, escritor e professor Zen na tradição Sanbo Kyodan do Budismo Zen Japonês. Seu livro mais recente é Ecodharma: Buddhist Teachings for the Ecological Crisis.
Mandy Barker é uma premiada artista fotográfica britânica cujo trabalho envolvendo detritos plásticos marinhos recebeu reconhecimento global.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
David Loy. New York (NY). Awakening in the Age of Climate Change. New York (NY): Trycicle: The Buddhist Review 2015. https://tricycle.org/magazine/awakening-age-climate-change/
Tradução livre: ESABE – Espaço de Saberes https://esabe.com.br