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O Corpo e os Paradigmas das Medicinas na Saúde Corporal-mental-espiritual

Foto Sarah Sever

 

Foto Sarah Sever

Iniciemos nossa explanação apresentando algumas noções trazidas por pesquisas das Ciências Contemplativas na saúde humana.

Em 2002, cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard demonstraram a melhora da memória de idosos saudáveis que desenvolviam o treinamento de atividade de atenção e relaxamento. O grupo de cientistas orientado por Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin, em 2003 observou o aumento do número de anticorpos de pessoas em treinamento de práticas contemplativas por oito semanas após vacinação contra gripe, em relação ao grupo de controle. Com o uso de imagens de ressonância magnética, pesquisa dirigida em 2005 por Sara Lazar, do Hospital Geral de Massachusetts, se evidenciou que as práticas contemplativas aumentam as espessuras do córtex pré-frontal cerebral (área ligada ao planejamento de comportamentos cognitivos complexos) e da ínsula direita (ligada às sensações corporais e às emoções); significando que as práticas contemplativas têm a ver com alterações na estrutura física do cérebro.

Como esses processos neurais e mentais se determinam e interagem? A resposta a esta pergunta tem subjacente uma outra pergunta complexa: o que é o corpo humano? Ou seja, sob qual paradigma se conceitua esse objeto que chamamos de “corpo”?

Pode parecer uma questão diletante ou de resposta óbvia, mas de fato implica o exame do próprio modo de se construir uma visão científica. Se abrirmos o campo da pesquisa, vemos que as culturas humanas se referem ao corpo e à mente de modos diversos. Em virtude desses mapeamentos diferentes, os diagnósticos sobre as doenças e, por consequência, as terapêuticas preventivas e curativas apresentarão diferenças, e não raro, divergências.

Não é propósito deste artigo adentrar muito por esta questão, mas algo sobre isso merece ser apontado em algumas linhas gerais. Escolhemos apresentar três perspectivas paradigmáticas da medicina: medicina hindu ou Ayurveda; medicina tibetana ou Sowa Rigpa; e medicina chinesa.

Os paradigmas gerais da medicina hindu e tibetana

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A compreensão do funcionamento e eficácia de uma medicina tradicional como a hindu exige entendermos a visão mais ampla em que esta civilização se fundamenta, e na qual suas práticas de cura se desenvolvem.

O primeiro aspecto é a percepção de que se trata de uma civilização milenar espiritual. Ou seja, povos em que sua visão de mundo e sua prática focalizada na integralidade corpo-mente-espírito estão fundadas em bases espirituais. Significando que sua existência está conectada com o Transcendente: referindo ao que está para além da realidade fenomênica, condicionada, impermanente e finita. Sem compreender esta conexão é impossível entendermos estas civilizações, pois elas se tornam sem sentido.

Nossa origem e a de todo universo são concebidas na civilização hindu como divinas. Sendo esse o significado de Tradição, na qual cada aspecto da vida apresenta a conexão entre a Terra e o Céu. Sua origem sendo transcendente é supramundana, ou apaurushêya no sânscrito.

A base dos saberes da civilização milenar hindu sobre a natureza da existência, moralidade, cosmologia e espiritualidade está reunida nos Vedas – da raiz sânscrita Vid, significando conhecimento ou saber –, há pelo menos 4.000 anos. Essas antigas escrituras se reúnem nos textos sagrados Rig Veda, Yajur Veda, Sâma Veda e Atharva Veda.

A sabedoria contida neste conjunto de livros forma a doutrina básica da tradição hindu. Tendo os Vedas um conjunto de ciências auxiliares enriquecendo seu estudo, chamado Vedanga – da raiz sânscrita veda, significando “conhecimento e textos sagrados”, e da palavra anga, significando “membro e parte”; como as ciências da fonética, gramática, astrologia etc. Sendo, também, adicionados aos Vedas os conhecimentos secundários dos Upavedas – derivado da raiz veda, e do prefixo upa, significando “perto e auxiliar” –, do qual a medicina Ayurveda ou a “ciência da vida” faz parte. Estando incluída no Rig Veda e no Atharva Veda.

O Ayur Veda contém um conjunto de receituários de ervas, plantas e ritos invocatórios e propiciatórios visando a cura das doenças, e buscando atuar nos planos corporal, mental e espiritual. As práticas de recitação dos mantras – significando um termo ou texto breve – de cura, ligados ao Atharva Veda, são tão fundamentais para a cura quanto as concomitantes práticas químico-físicas de sua medicina milenar.

Complementarmente, o Yoga sistematizado posteriormente nos Yoga Sutras de Patãnjali oferece uma prática corporal e mental de equilíbrio, o Hatha Yoga, através dos exercícios de postura (asanas) e ritmos respiratórios (pranayama) preparatórios para a realização espiritual, e a tarefa de contemplação do Raja Yoga. Também no Yoga, embora seus efeitos possam ser procurados apenas para o bem-estar, não há desconexão entre o corporal, o psíquico e o espiritual. A realização espiritual, união (Yoga) com o Absoluto, é o pilar e a meta maior da tradição hindu.

O termo Ayur provém do termo Ayus, significando “vida, longevidade, modo de vida, ser vivo, homem, filho, linhagem”. Originado da raiz verbal sânscrita In, significa “movimento, espalhar, passar, vagar, escapar, mudança”; denotando os sentidos de fluxo, vir-a-ser – a saúde em seu dinamismo e impermanência. Voltaremos mais adiante a estes importantes significados.

A medicina Ayurveda possui oito áreas:

  1. Salya tantra: a extração de um corpo estranho ou substância (como extração de dardos, lascas etc.) – Especialidades Ayurveda mais bem indicadas para cada caso. Aproximando-se das práticas indígenas da pajelança e da cirurgia na medicina tibetana.
  2. Salakya tantra: tratamento das doenças da cabeça e pescoço, incluindo olhos, ouvidos, nariz, garganta, boca e dentes, através de Salakas ou instrumentos afiados – Neurologia, Oftalmologia, Otorrinolaringologia, Estomatologia ou Odontologia.
  3. Kaya cikitsa: tratamento das doenças que afetam todo o corpo, o que a torna uma espécie de medicina interna segundo a interpretação tibetana – Medicina Interna Ayurveda.
  4. Bhuta vidya: tratamento dos transtornos mentais produzidos por más influências ocultas, como energias e espíritos negativos, e outros comprometimentos mentais – Psiquiatria Ayurveda.
  5. Kaumara bhritya (Bala tantra): cuidado da saúde infantil – Pediatria Ayurveda.
  6. Agada tantra: doutrina dos antídotos ou tratamento de diversas condições de envenenamento por substâncias tóxicas de origem vegetal, animal e mineral – Medicina Toxicológica Ayurveda.
  7. Rasayana tantra: doutrina dos elixires ou rejuvenescimento, longevidade e promoção da saúde física e mental do idoso – Geriatria Ayurveda.
  8. Vajikarana tantra: doutrina de revitalização sexual ou aumento da capacidade sexual, tratamento de distúrbios sexuais e prevenção da saúde das próximas gerações – Urologia/Andrologia e Ginecologia Ayurveda.

A medicina Ayurveda vê na doença o resultado das proporções desproporcionais dos Tridoshas (os três humores). Na medicina tibetana, este desequilíbrio é visto como “aflição” no nível primordial e transcendente, e desordem no nível manifesto imediato. Ainda na perspectiva médica tibetana, todos os seres não emancipados, ou seja, que ainda não atingiram a plenitude da realização nirvânica seriam afligidos pelas imperfeições dos três venenos fundamentais: Dug gsum ou bDag‘zin, o Ego manifesto na forma de gTi mug ou ignorância, ilusão e confusão. Que por sua vez produz Dod chags ou apego e gula. E após, Zhe sdang, ódio, aversão e agressão.

Na perspectiva tibetana, o médico tratará a desordem causada por dietas impróprias, comportamento disfuncionais e impactos ambientais, usando várias dietas, orientações comportamentais, medicamentos e outras terapias. Mas o objetivo básico é escapar do ciclo mundano, ilusório e impermanente da existência, e alcançar liberação dessas aflições pela genuína prática da compaixão.

Na medicina tibetana a mente é considerada o pano de fundo e o que fornece a base para o corpo. E na base de sua teoria e prática estão presentes três humores que constituem o corpo e desenvolvem seus sistemas corporais:

  1. Vayu (ou Vata) – O vento, ar vital que preenche o corpo, e humor aéreo absorvido pela respiração consciente (prana). Sendo caracterizado por pensamentos focados (concentrados), automáticos (rápidos), intrusos (sem controle) e disfuncionais (padrões negativos);
  2. Pitta – O calor e humor bilioso ligado ao desequilíbrio hepático. Sendo caracterizado pela raiva, irritabilidade, agressividade e ansiedade;
  3. Kapha – A fleuma. Esses ‘componentes’ do corpo estão espalhados pelo corpo inteiro, mas se concentram mais em certas regiões.

Encontramos algo semelhante na visão dos gregos sobre os quatro humores: fleumático, sanguíneo, colérico e melancólico; suas ligações com as estações sazonais de frio, umidade, calor e seco, e os quatro elementos e os temperamentos humanos.

Além dos três doshas, o Ayurveda também admite a existência de sete tipos de tecido (dhatu) e três substâncias impuras (mala). Os dhatus são o sangue, músculos, gordura corporal, ossos, medula óssea e sêmen. Os malas ou resíduos excretados são as fezes, urina e suor. Segundo o Ayurveda, existem 107 marmans (regiões sensíveis) que são conexões vitais entre os tendões, músculos, ossos e articulações, ou entre as veias.

Outro conceito importante que o Yoga e o Ayurveda têm em comum é o de ojas ou energia da vitalidade. Ojas diminui com a idade e se reduz em decorrência da fome, da má alimentação, do excesso de trabalho, da raiva e da tristeza. As condições opostas geram ojas e garantem assim a boa saúde.

Quando ojas fica muito tempo num nível baixo, a pessoa sofre de doenças degenerativas e envelhecimento prematuro. Ojas está presente no corpo inteiro, mas se armazena especialmente no coração que é também o locus físico da consciência” (FEURSTEIN, 2006, p. 122-123). Haveria de se incluir a questão dos centros vitais psíquicos, chakras, sete principais distribuídos ao longo da coluna vertebral. Assim, como dos nadis, treze canais ao longo dos quais fluem os diversos tipos de força vital (prana) e as técnicas de purificação (em especial a prática do vômito induzido e da limpeza corporal).

Concluiremos esta apresentação resumida de uma cultura médica complexa como a hindu, relembrando que seu objetivo maior é assegurar as condições necessárias para a realização espiritual. Onde o corpo, longe de ser visto como uma fonte de degradação e oposição ao espírito, é tratado como morada divina e como caminho alquímico para a perfeição espiritual. Tratar-se-ia de obter, a partir do corpo físico, um corpo de Luz, transubstanciado e adamantino (vajra). Perspectiva também considerada pelo Tantrismo.

Nesta perspectiva, o corpo-mente humano não é o que parece ser: um limitado tubo digestivo ambulante. Basta-nos relaxar ou meditar para descobrir que esse popular estereótipo materialista não é verdadeiro. Pois, essas são as condições que nos possibilitam perceber a dimensão energética do corpo e o “espaço profundo” da consciência.

Quando se dissolvem os limites rígidos que traçamos ao nosso redor, começamos a nos sentir mais vivos e ingressamos num mundo em que as experiências são mais intensas. O relaxamento e a meditação substituem a imagem que normalmente temos do corpo, por uma percepção do fato de que somos um processo fluídico intimamente ligado a um todo maior e vibrante.

Nesta experiência os limites do ego perdem a sua rigidez. A física quântica se refere à interconexão de todas as coisas, e que a ideia de que eu sou uma entidade física isolada não passa de uma ilusão. Além disso, entende que o chamado mundo objetivo é uma alucinação, uma projeção do imaginário ponto de subjetividade que temos dentro de nós.

Temos sido muito lentos em assimilar as profundas implicações práticas da visão de mundo físico-quântica. Sem dúvida porque nos obriga a operar mudanças extensas e profundas no modo pelo qual concebemos a nós mesmos e ao nosso universo. Porém, a perspectiva da física não é tão nova quanto gostaríamos de acreditar (FEUERSTEIN, 2006, p.461).

Os paradigmas gerais da Medicina tradicional chinesa

C:\Users\Arthur\Pictures\Meridiano  1 VG Sarah Moura.jpg Imagem in: Massagem Terapêutica Chinesa. Sarah Moura, RJ, 2014

Seus fundamentos podem ser encontrados no livro Nei Ching, atribuído ao Imperador Huang-Ti, 3º milênio a.C. Assim, como a medicina hindu tem uma base transcendente; partindo do princípio da energia cósmica Chi ou Qi, que flui por canais (os meridianos) é captada por determinados pontos distribuídos na pele.

O corpo é visto como energia manifesta, como matéria densa viva. O organismo seria um complexo metabolizador, que se renova de energia vital através da assimilação dos alimentos, da respiração e das vibrações captadas pelos sentidos. Reencontramos certas semelhanças com a concepção hindu da energia vital prana, que vem do oxigênio, da água e dos alimentos.

Na cosmogênese sino-taoísta, no princípio havia a unidade Chi ou Qi, cuja polarização e entrelaçamentos dos princípios opostos e complementares Yin-Yang gera os múltiplos e variados seres manifestos. As vias de energia se dão segundo cinco vias: dentro dos ossos, nos músculos, vasos sanguíneos e linfáticos, região subcutânea e superfície da pele. Esses dois últimos sendo o campo de aplicação da acupuntura, do moxabustão e da prática da massagem do Do-in e Tui-ná; e ativadores da circulação da energia.

Temos doze importantes meridianos, cada qual com sua função e associados a doze órgãos. Porém, o nome do órgão não se refere apenas à sua substância material, mas como órgãos-funções com manifestações energéticas e psicossomáticas. Para a manutenção do equilíbrio e saúde desses órgãos-funções incluem-se dietéticas, exercícios de Tai Chi, Fitoterapia, e treinamento meditativo Tao-in, um processo de mentalização de centros de energia.

Encontramos junto aos princípios Yin-Yang a noção de cinco movimentos relacionados aos cinco elementos (água-gerador de flexibilidade; madeira–movimento vivo; fogo–movimento; terra-transformação; e metal-purificação). Estabelecendo uma ligação com os órgãos internos Ghens (rins), Gan (fígado), Xin (coração), Pi (baço/pâncreas) e Fei (pulmão); cada qual com funções próprias (orgânicas, psicológicas etc.) e com uma exteriorização ao nível dos canais energéticos.

Os diagnósticos baseiam-se no exame das cores na face, entrevistas, exame da língua e do pulso (CANÇADO, 1976, p.13-19; TABOSA, 2010). A noção de saúde e doença tendo a ver com a proporção harmônica das polaridades na ação sobre as funções orgânicas. No lide dos desequilíbrios e bloqueios da força vital encontramos um conjunto de terapias referidas de tonificação e sedação dos processos energéticos (1).

Uma primeira observação sobre esses três paradigmas aqui apresentados de forma simplificada, permite-nos antever um aspecto importante: as aproximações entre a concepção hindu, tibetana e chinesa. Devido ao fato de entenderem o corpo humano dentro da perspectiva de um processo cósmico-espiritual de energias. Operando a partir de um conjunto de princípios sutis, dos quais o corpo em sua forma material é o nível mais denso e grosseiro desse processo.

Esse é o tema que os fundamentos das Ciências Contemplativas pretendem trazer para o diálogo com as Ciências Médicas. Não se trata de polarizar discussões entre os paradigmas das várias medicinas. Mas conjugar esforços mútuos entre o que é útil em cada uma dessas áreas, na busca de soluções práticas efetivas para a saúde humana.

Notas

  1. Para maiores informações sobre a Medicina tradicional chinesa, veja https://esabe.com.br/praticas-da-medicina-tradicional-chinesa/

Referências Bibliográficas

CANÇADO, J.C.L. Do-in. Livro dos Primeiros Socorros. RJ: Ground, 1976.

FEUERSTEIN, G. A Tradição do Yoga. SP: Ed. Pensamento, 2006.

MOURA, S. Massagem terapêutica chinesa. São Paulo: BASE MTC – Cooperação China-Brasil para educação e desenvolvimento da Medicina Tradicional, 2014.

SHAKER, A. A travessia buddhista da vida e da morte. Introdução a uma Antropologia Espiritual. RJ: Gryphus, 2003.

TABOSA, Â. A Medicina Tradicional no Oriente e no Ocidente (apontamentos). 2º Simpósio Internacional de Medicinas Tradicionais e Práticas Contemplativas, Unifesp, SP, 17-18 setembro 2010.

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