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2. Quando não havia nada, brotou uma mulher de si mesma

Quando não havia nada, brotou uma mulher de si mesma

No princípio o mundo não existia. As trevas cobriam tudo. Quando não havia nada, brotou uma mulher de si mesma. Surgiu suspensa sobre seus bancos mágicos e cobriu-se de enfeites que se transformaram em uma morada. Chama-se etän bë tali bu (quartzo, compartimento ou camada). Ela própria se chamava Yebá bëló (terra, tataravó), ou seja, avó do universo (1).

De dentro da Grande Escuridão principial indiferenciada, irá brotar o fundamento do mundo. Neste mito, reveste-se da forma da avó (tataravó) do universo. A figura da avó evoca a ancestralidade, no sentido do princípio da geração, da qual as sucessivas linhagens existenciais são uma expressão específica. No mito dos Mbyá-Gauarani, Nãnde Ru Pa-pa Tenonde guete rã ombo-jera pytu yma gui (traduzindo): “Nosso Pai último-último primeiro, para seu próprio corpo criou das trevas primigênias” (2). O radical ra traduz o conceito de criar no sentido de “fazer que se desenvolva, que se abra, que surja”. Brotar, criar, surgir de si mesmo, porque a Determinação primeira tem seu fundamento em si mesmo, no sentido de ser autônomo (de auto-nomos, ter a própria Lei). Por isso, dizem os Dêsana, a avó do universo se chama a “não-criada”. No mito dos Apopokuva-Guarani, Nanderuvuçu oú petei, pytu anoi ojicua”, ou seja, “Nãnderuvuçu chegou só, em meio à obscuridade, se desvelou só (se descobriu a si mesmo)” (3). Também em outra versão da Genese Mbyá-Guarani, “Nãnde Ru Pa-pa Tenonde ojera pytu yma mbyte re – Nosso Primeiro Pai, o Absoluto, criou-se a si mesmo (surgiu) em meio às trevas primigênias” (4).

Surgiu suspensa sobre seus bancos mágicos. A forma que a avó do universo surge, sentada sobre bancos mágicos, é simbòlicamente expressiva (5). A postura sentada expressa sua qualidade de fundamento-estabilidade, como a montanha e a pirâmide assentadas sobre suas bases. No Budismo, o Buddha iluminado sentado em meditação na postura de lótus é a imagem arquetípica para os praticantes há 2.500 anos (5A). Das seis coisas invisíveis com que Yebá bëló, a avó do universo, constrói-se a si mesma, uma delas são os bancos (sé-kali).

A gênese dos Mbyá-Guarani prossegue dizendo: Ivara pypyte, apyka apuä i, pitu yma mbyte re oguero-jera, que significa “as divinas plantas dos pés, o pequeno assento redondo, em meio das trevas primigênias, os criou, no curso de sua evolução” (6). Apyka apu’a i é o pequeno assento redondo em que aparece Ñande Ru em meio às trevas (7). Por seu aspecto simbólico e prático, os bancos ocupam um lugar marcante dentre os objetos do artesanato indígena. Em geral talhados em madeira, destinados aos pajés, chefes e visitantes, são prerrogativa masculina e representam várias formas animais, dentre eles a onça, o jacaré, o jabuti, o sapo, a tartaruga, as aves e os peixes (8).

Na China, as estatuárias mostram o mundo sendo suportado pela tartaruga, os seus quatro pés representando os quatro cantos do mundo. Expressão simbólica do suporte do mundo (8A), os bancos também servem como veículos para os translados pelo espaço: “também as aves agoureiras – ou espíritos que assumem a forma de aves – se transladam pelo espaço no apyka” (9). Quando Nandesy (“nossa mãe“, segundo os Apopokuva-Guarani, e personificação do princípio cósmico feminino) necessita algo, chama a seu filho Tupã (filho de Nanderuvuçu – “nosso pai grande”, e Nandesy). Assentado sobre seu apyka no extremo ocidente, Tupã – como personificação da tempestade – levando o adôrno labial (tembetá, feito da resina amarela do yatobá, relâmpago), viaja pelos céus para o oriente, tendo ao seu lado nos extremos do apyká dois ajudantes (yvyraiyá) portadores dos bastões de combate. “Durante a viagem se agita o adorno labial de cor amarelo claro, produzindo o raio. Chegando ao oriente, diante da morada de Nandesy, Tupã a circunda em seu apyká, para desembarcar diante de sua mãe e lhe falar. O tembetá prossegue relampejando, embora já não se ouve o trovejar, pois o apyká se deteve; percebe-se apenas os clarões no horizonte oriental”.

Os Yvyraiyá de Tupã aparecem de quando em quando sob a figura do pássaro que os brasileiros chamam “tesoura” e os Guarani, tapé, ave parecida a uma golondrina gigante, cujo vôo extraordinariamente elegante desenvolve de preferência quando uma tormenta se avizinha. Segundo a opinião dos Guarani, atraem as nuvens de chuva e para receber graça tão preciosa na agricultura, costumam os pajé Apopokuva colar as largas plumas da cauda deste pássaro em seu diadema, bem ao meio da testa” (10). São frequentes nos relatos indígenas as viagens dos pajés em seus bancos pelos mundos dos espíritos, para a cura, o resgate de almas roubadas, ou o restabelecimento de ligações celestes interrompidas pela quebra de normas por parte de algum membro do grupo.

As formas com que cada tradição indígena narra os passos de fundação do mundo são múltiplas, obedecendo a uma lógica espiritual interna e própria, como projeções luminosas singulares a cada forma tradicional, que cada grupo indígena é a atualização existencial. Cada uma deve ser compreendida à luz de sua expressão própria. Mas podemos procurar apreender os princípios concordantes que estão na base, qual arquétipos no fundamento das formas tradicionais indígenas.

Essa mulher, prossegue o relato Dêsana, depois de ter aparecido, pensou como deveria ser o futuro mundo. Pensou isso em sua morada de quartzo, na etan bê tali bu. Enquanto pensava, mascou ipadu (11) mágico e fumou cigarro mágico. Seu pensamento começou a tomar forma e levantar-se como se fôsse uma esfera, culminando numa torre. A esfera, ao elevar-se, incorporou toda a escuridão. Dessa maneira, a escuridão ficou dentro daquela esfera, que era o universo. Ainda não havia luz. Só o compartimento onde ela se fez havia luz, porque era todo branco, de quartzo. Feito isso, ela chamou a esfera ëmekho patolé (universo, barriga). Era como se fôsse uma grande maloca. Depois ela quis povoar essa grande casa” (12).

Cada operação da avó do universo é um passo fundador dos princípios do mundo. Seus enfeites se transformam em sua morada de quartzo. Só aí havia luz, porque era todo branco, de quartzo. A natureza intrìnsicamente iluminada do princípio do mundo também é enunciada no mito Mbyá-Guarani: “Ele (nosso Pai Namandu, o Primeiro) não viu trevas: embora o Sol ainda não existisse, Ele existia iluminado pelo reflexo de seu próprio coração; fazia que lhe servisse de sol a sabedoria contida dentro de sua própria divindade” (13). Também segundo os Apopokuva-Guarani, em meio à escuridão Nanderuvuçu levava o sol em seu peito (14), sendo o sol não o astro-sol, mas a fonte de luz própria do Criador.

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O mascar e fumar as ervas mágicas faz parte dos ritos indígenas porque instaurados pelos fundadores do mundo. Vegetais extraídos do interior da terra-mãe, seu plantio e consumo obedecem a regras rituais necessárias ao seu funcionamento como suportes de atividades espirituais. Segundo os Guarani, uma das operações da atuação do Criador é a criação do tabaco (pety) e do cachimbo (tatachina kãgã, de tatachina – neblina vivificante e kãgã, ossos). O tabaco participa, em seu plano, das qualidades da neblina vivificante (tatachina), criada, junto com as chamas (tataendy), por Namandu RuEte.

Muitos invernos têm passado desde que isto aconteceu: uma mulher wakan, uma mulher sagrada, veio ao encontro do povo Lakota e trouxe o cachimbo sagrado. Diante do chefe Hehloghecha Najin (Chifre Oco de Pé) lhe disse:

“Aqui se encontra o cachimbo sagrado; com ele, nos invernos futuros, enviarás vossa voz a Wakan-Tanka, vosso Avô e Pai. Com este cachimbo de mistério caminharás pela Terra, pois a terra é vossa Avó e Mãe e é sagrada. O fornilho desse cachimbo é de pedra vermelha. É a Terra. Este jovem bisonte que está cravado na pedra, e que olha para o centro, representa os quadrúpedes que vivem sobre vossa mãe. A haste do cachimbo é de madeira, e isto representa tudo o que cresce sobre a Terra. E estas doze plumas que caem do local onde a haste se encaixa no fornilho são de Águia Pintada e representam a Águia e todos os seres alados. Todos estes povos e todas as coisas do Universo estão vinculadas a tu que fumas o cachimbo; todos enviam suas vozes a Wakan-Tanka, o Grande Espírito. Quando orais com este cachimbo, orais por todas as coisas e com todos elas” (14A).

Este mito é contado pelo povo Lakota, da nação Sioux, comunidade indígena da América do Norte. Todas as coisas do Universo se ligam, como horizontalidade, à haste do cachimbo. O fogo, alimentado pelo sopro do vento e dos homens, queima dentro do fornilho as ervas do chão, símbolos do mundo terrestre. Aromas, fumaça e vozes sobem na verticalidade ao Grande Espírito. No Budismo tibetano, temos algo análogo: a Roda das orações. Em seu girar, pela mão do homem, o voto de compaixão é renovado, todos os seres beneficiados. No cachimbo, o simbolismo é axial, o mundo representado pela horizontal e a Transcendência pela vertical. Na roda das orações, o simbolismo é circular, a roda representa os mundos existenciais, subordinados ao Centro, para o qual se procura dirigir.

Ele existia iluminado pelo reflexo de seu próprio coração. Em todas as tradições antigas, o coração é um símbolo do Centro, seja do ser, seja de um mundo ou como Centro do Mundo. O coração é considerado como a sede da inteligência, por isso a associação entre o Coração e o Sol (espiritual). Inteligência aqui deve ser compreendida como a inteligência pura, universal, a intuição que ilumina, a sabedoria contida dentro da própria divindade de Namandu RuEte, e que lhe servia de sol. A razão é o reflexo da inteligência no domínio individual, e nesse sentido associa-se analogamente à lua e a inteligência ao sol (15).

Ignorando essas analogias simbólicas, os colonizadores das Américas incorriam no êrro de considerar os povos indígenas pagães, porque adorariam um objeto físico com o sol. Quando o Inca Hayana Capac, chegando a Cuzco para a celebração da festa principal do Sol, o Raymi, e mira o Sol, o que pareceu ilícito ao sumo sacerdote este ato de mirar o pai-Sol, Hayana Capac replica: “Pois eu te digo que este nosso pai o Sol deve ter outro senhor maior e mais poderoso que ele. Aquele que lhe manda fazer este caminho, que faz cada dia sem parar; porque se ele fôsse o supremo senhor, algumas vezes deixaria de caminhar e descansaria por gosto próprio ainda que não tivesse necessidade alguma” (15A).

Abramos um parenteses para esclarecer este equívoco fundamental que se incorre, desde o tempo dos invasores até hoje, em algumas práticas missionárias que pretendem evangelizar os povos indígenas. O pressuposto seria de que os índios seriam pagães a serem salvos, e ainda quando consideram terem os índios alguma religião, seria uma “religião da Natureza”, e, portanto, não um religião autêntica.

Examinemos cada um desses dois supostos. O termo “pagão” é uma corruptela do termo paysanne (que em português se traduziria por “camponês, paisano”), e que, quando da decadência e extinção da tradição romana, como os grupos camponeses ainda mantivessem por algum tempo suas práticas religiosas anteriores ao advento do Cristianismo, associava-se estas práticas como a dos “pagães”.

A situação dos povos indígenas das Américas no período pré-colombiano era, e é, totalmente outra. Não se trata de povos com práticas de tradições em extinção, como o caso dos grupos rurais do mundo greco-romano dos primeiros séculos. Quanto à ideia dos povos originários praticarem uma “religião da natureza” ou uma “religião naturalista”, devemos nos perguntar o quê se entenderia por estes termos. Se entendermos o termo “Natureza” como o mundo fenomênico, destituído de nexo com o Transcendente, e se “religião” seria justamente o religar o mundo (Natureza) ao transcendente (supra-Natureza), então uma “religião da Natureza” não existe, pois é uma contradição entre os termos. Mas se entendermos o termo “Natureza” em um sentido mais amplo e profundo, que abarca não só o mundo fenomênico como seus princípios transcendentes (dos quais os mundos são manifestações transitórias e espelhos-símbolos) – e esta é a postura das tradições indígenas – então os povos indígenas não são pagãos a serem salvos, mas povos estruturados em formas tradicionais de extensa e rica base metafísica-espiritual que devem ser respeitados e compreendidos em sua singulariedade espiritual, onde a Natureza externa ainda é vista e vivida como teofania, manifestação divina que alimenta e ilumina o trilhar por esta existência.

Talvez fôsse mais sábio refletir sobre esta verdade: se há alguém que necessita urgentemente ser salvo, são os “homens brancos”, que insistem na destruição da Natureza e dos povos indígenas, pisoteando os ensinamentos do fundador de sua via cristã. Lembremos que o que deixava os povos indígenas perplexos não era tanto a forma espiritual do Cristianismo, mas o abismo entre seus ensinamentos e as atitudes dos colonizadores que se diziam cristãos.

Dois pontos importantes haveria que se acrescentar sobre esse tema. O primeiro é a marcante distinção que o Cristianismo desde os seus primórdios iria fazer entre o mundo e o reino divino, compreensível por ser o Cristianismo uma via interior em que o aspecto “distrativo” (e por isso perigoso) do mundo é mais enfatizado do que seu aspecto luminoso e teofânico (16). E também porque o Cristianismo teve de se defrontar com uma herança greco-romana que em seu período de decadência fazia da Natureza e dos sentidos um culto do hedonismo, desconectado de seus princípios transcendentes.

Acresce-se a isto o fato de que a ênfase do Cristianismo é a salvação dos homens e não tanto uma preocupação com os outros seres da Natureza, que seriam resgatados indiretamente pela redenção dos homens. Mas esta excessiva distinção dentro da visão cristã traria consequências nefastas para as tradições indígenas, que tiveram que arcar com esta tendência dos colonizadores verem as práticas indígenas como “práticas pagãs” e “naturalistas”. Assim escrevia Pe. Manuel da Nóbrega em sua carta de informação das terras do Brasil, aos Padres e Irmãos de Coimbra, em agosto de 1549: “Esta gentilidade a coisa nenhuma adora, nem conhecem a Deus, somente aos trovões chamam Tupana, que é como quem diz coisa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para trazê-los ao conhecimento de Deus, senão que chamar-lhe Pai Tupana” (16A).

O segundo ponto a ser apenas relembrado é a dificuldade das tradições semíticas, por sua forma espiritual, em lidar com tradições com formas muito diferentes das suas, em que a representação de Deus e os “cultos religiosos” não aparecem, ao menos nas formas compreensíveis para estas religiões monoteístas. A dificuldade de entender o que seja uma tradição espiritual e uma religião traz consequências nocivas quando se deparam umas frente às outras. Haja visto como para a maioria dos não-indígenas, o mundo espiritual indígena é ainda bastante distante e incompreensível, e motivo de muitos preconceitos e violências.

Coração do Mundo, Centro do Mundo, Coração do Céu. Assim várias tradições designam o Sol espiritual: “segundo Macrobio, ‘o nome de Inteligência do Mundo que se dá ao Sol responde ao de Coração do Céu; fonte da luz etérea, o Sol é para este fluido o que é o coração para o ser animado’; e Plutarco escreve que o Sol, ‘dotado da força de um coração, dispersa e difunde de si mesmo o calor e a luz, como se fôssem o sangue e o hálito” (17). Nas antigas tradições da América Central, como no relato do Popol Vuh da tradição Maia, vamos encontrar o nome Coração do Céu ligado ao sol: “Apenas havia imobilidade e silêncio nas trevas, na noite. Apenas o Criador, o Formador, Tepeu, Gucumatz, os Progenitores, estavam na água rodeados de claridade. Estavam ocultos sob plumas verdes e azuis, por isso se chama-os Gucumatz. De grandes sábios, de grandes pensadores é sua natureza. Desta maneira existia o céu e também o Coração do Céu, que este é o nome de Deus. Assim contavam” (18).

Feito isso, (ela a avó do universo) chamou a esfera de ëmëkho patolé (universo, barriga). Era como se fôsse uma grande maloca. Depois ela quis povoar essa grande casa. A esfera cósmica recebe um nome que envolve duas palavras significativas: universo e barriga. A barriga é a parte do corpo que é o receptáculo das substâncias, seja do alimento a ser processado pelos vários órgãos, seja de gestação dos filhos. A barriga, no microcosmos, é o espelho da barriga-universo. Para muitos povos tradicionais, o centro do ser está no umbigo, e um dos símbolos mais frequentes do Centro do mundo é o Umbigo, o Ômphalos dos gregos, cujo templo de Delphos era o centro espiritual da Grécia antiga.

Barriga, abdômen, ventre, útero, a parte mais íntima, âmago, são alguns termos que ligam a ideia do universo como barriga, centro, umbigo e âmago. Em sânscrito, o têrmo para umbigo é nabhi, que também alude ao cubo da roda, centro a partir do qual o cosmos é extendido (a raiz nabh também designa “extender-se”). Nabhi, omphalos, a pedra, o habitáculo divino, antigo penhasco, ilha, o umbigo. Também os derivados desta raiz nabh, nas línguas célticas e germânicas, têm significados afins, como nabe (meio) e nabel (umbigo) em alemão; nave e navel em inglês. Considerando estas formas nab e nav, “em gaulês, a palavra nav ou naf, que é idêntico a estes últimos, tem o sentido de “chefe” e se aplica mesmo a Deus; é por isso a ideia do Princípio central que aqui se exprime” (19).

Na língua Guarani, o umbigo é puru’ã (gravidez – puru’a), que também designa “meio, centro”, têrmos designados também como mbyte (meio) e apyte (centro, meio, vértice, miolo, interior, íntimo, cabeça, coroa, tonsura) (20). É no futuro centro da terra (yvy mbyte) que Namandu Ru Ete criará a palmeira eterna, que junto com as outras quatro palmeiras eternas criadas em cada um dos quatro extremos cardinais, formarão a base que assegura e ata a morada terrestre. Reencontramos assim a mesma simbologia das “cinco regiões” em várias tradições antigas: os quatro pontos cardeais (e os quatro elementos – ar, fogo, água e terra) e o centro (cuja expressão, como princípio dos elementos, é o Ether).

Prosseguindo na compreensão da Gênese do mundo segundo os mitos indígenas, dois aspectos se ressaltam. O primeiro é que não é o Criador que diretamente cria o mundo. No mito dos Dêsana, a avó do universo tira seu ipadu (coca) da boca e o faz transformar nos ëmëkho nehké semá (universo, avós, muitos), os cinco trovões chamados etan bë weli mahsá (quartzo, que são, gente). Quer dizer, homens da pedra branca, que são eternas, não são mortais como nós (21). Do princípio da manifestação (a avó do universo) surgem os cinco princípios (muitos, avós, universo): “Gerei vocês para criarem o mundo. Cabe-lhes, agora, imaginar um modo de fazer a luz, fazer os rios e a futura humanidade, a pamani mahsá aninbolá (transformação, gente, que vão ser)” (22).

Também no relato dos Mbyá-Guarani, Namandu Ru Ete cria os Namandu Py’aguachu, os Namandu de coração grande, valoroso. Cria-os para serem, junto com Namandu Chy Ete (a futura verdadeira mãe dos Namandu), “os verdadeiros pais das almas de seus futuros numerosos filhos”. A paternidade espiritual das futuras almas que nascerão será tripartida entre Karai Ru Ete- Karai Chy Ete, Jakairá Ru Ete- Jakairá Chy Ete e Tupã Ru Ete- Tupã Chy Ete. Os Mbyá chamam esses Primeiros Pais das almas de ipurua’a ey va’e, “os que carecem de umbigo, porque não foram engendrados” (22A).

O desdobramento descendente dos princípios celestes que engendrarão os mundos e seres obedece a um princípio de hierarquia que é constitutivo da ontologia cósmica e por isso está presente de modo concordante entre os povos tradicionais. Mesmo na Gênesis hebràica, a operação criativa é atribuída não ao Princípio Supremo, mas ao Ser-dos-seres, que aparece referido no plural, os Elohim. No Corão, livro sagrado da tradição islâmica, o Criador é referido com “nós”. Namandu Ru Ete, o deus do Sol, da sabedoria contida em sua própria divindade, e em virtude de sua sabedoria criadora, cria os companheiros de sua divindade, repartindo a eles (fazendo que eles tivessem) a consciência da Divindade. A nomenclatura e os atributos com que os relatos se referem aos deuses precisam ser compreendidos em seus significados simbólicos e espirituais, evitando os riscos de uma apreensão antropomórfica desse processo.

A cosmogonia fala de uma hierarquia de princípios constitutivos em que cada um deles desempenhará um papel determinado na formação dos mundos existenciais, e essa hierarquia de determinações é uma espécie de arquétipo principial que terá sua expressão humana na presença da genealogia das linhagens e sub-ramos dos grupos indígenas, como um trançado de rede, adorno de miçangas ou contas de caramujo. Não há como compreender a estrutura hierárquica e complexa dos povos indígenas (e dos povos tradicionais em geral), sem compreendermos que são expressões atualizadas, em seu plano, desse tecido axial de seus princípios espirituais e cósmicos. Boa parte da dificuldade do mundo moderno em apreender a organização e o sentido da vida dos povos tradicionais advém desta pretensão em desconsiderar este princípio hierárquico, em nome de uma suposta horizontalização do cosmos e dos homens, como vemos nas tentativas de explicação não-sagrada de formação do mundo ou das relações entre os seres, em especial os seres humanos.

O compartilhar da Divindade com os deuses – futuros formadores dos rios, da luz e da humanidade significa que, se de um lado há uma hierarquia ordenadora desses princípios-deuses, de outro esses deuses participam da unidade da divindade (23). Para os povos indígenas, muitas vezes a relação com o divino não é feita diretamente com a Divindade Suprema. Muitas vezes a Divindade como Princípio Supremo nem aparecerá aos olhos exteriores dos estranhos, por isso a perplexidade dos missionários afirmando que “esta gentilidade a coisa nenhuma adora, nem conhecem a Deus”. Para os povos indígenas, a relação com o divino é feita junto a estas presenças que são os deuses próximos. Na Índia, a tradição hindu lembra que há tantos deuses quanto o número de devotos, e os deuses familiares são portas de acesso ao Princípio Supremo, Brahman. O termo “deuses” (assim como o têrmo “Deus”) não faz parte da nomenclatura indígena, foi aqui usado apenas como recurso convencional, exigindo daquele que se interessa em conhecer estes povos uma aproximação dos têrmos, formas próprias e significados da expressão da espiritualidade indígena.

Os nomes e características dos princípios criadores dos povos indígenas do Brasil, em virtude de sua diversidade de formações, são igualmente diversos. Entre os Dêsana, os primeiros a serem gerados como executores da vontade criadora de Yebá bëló são os emekho nebké semá, os cinco trovões etän bë weli mahsá. Para os Apopokuva-Guarani, embora o papel de criador e destruidor esteja ligado fundamentalmente a Nanderuvuçu, este não rege diretamente a Terra. Para acompanhá-lo encontrou junto a Si a Nanderu Mbaekuaá (“nosso pai, conhecedor das coisas”) (24), e responsável pelos detalhes da criação. Nanderuvuçu faz uma panela de barro e de dentro dela tira Nandesy (“nossa mãe”). Como “mãe do mundo”, sua origem está associada à panela de barro, portanto ao barro, expressão do fundamento substancial da existência. Na Índia, os textos sacros falam da libertação espiritual através da imagem simbólica da quebra dos vasos de barro, refazendo a unidade do espaço-Espírito. Da união de Nanderuvuçu e Nanderu Mbaekuaá com Nandesy virão respectivamente Nanderykey (“nosso irmão maior”) e Tyvyryi (“seu irmão menor”), os irmãos gêmeos.

O tema dos irmãos gêmeos é muito presente na mitologia não só dos povos indígenas do Brasil como também entre os povos indígenas das Américas e outras partes do mundo. Entre os Tupinambá, um é filho do herói-civilizador Maira-Monan-Atá e o outro de um homem comum. Algo análogo encontramos entre o povo Tembé. Às vezes o herói-civilizador tem apenas um filho, como é o caso dos Munduruku, cujo herói-civilizador Caru-Sacaebé tem o filho Carataú, mas este está acompanhado por seu parceiro Rayrú; ou o caso dos Chiriguano, onde Tatu-tunpa tem um só filho, para a geração do qual concorre seu rival (25), filho que terá a seu lado a companhia de outro personagem, Dyóri. Entre os Chipaias, encontramos os irmãos Kunarima e Arubiatá.

Os Itatins e Guaraius dos Andes referem-se a Pai Tacur e Pai Amanare, arrebatados ao céu por um dilúvio, análogo ao relato dos antigos Tupinambás sobre os irmãos Tamendonare e Ariconte: “Tamendonare e Ariconte eram dois irmãos rivais, divididos por seus diferentes temperamentos. Aricoute, intrépido e belicoso, desprezava seu mano, a quem reputava poltrão; mas este, certa vez, tendo humilhado o irmão por ter o mesmo trazido como troféu apenas o braço do inimigo, Aricoute, irritado, lançou o despojo contra a choça de Tamendonare, provocando, por esse ato, a ascensão ao céu, imediata, de toda a aldeia. Logo, Tamendonare bateu com o pé na terra, fazendo jorrar a água, que não tardou a recobrir o globo. Os dois irmãos, acompanhados de suas mulheres, salvaram-se trepados às árvores e repovoaram, depois, o mundo. Pretendem os Tupinambás descender de Tamendonare e os Timininós de Aricoute” (26).

No relato mitológico dos Wayana-Aparaí, grupo da família Karib que habita as áreas desde o norte do Pará até as Guianas, a criação do mundo é feita por Kuyuli, “o qual primeiramente teria criado as águas, e em seguida os Wayana e os outros homens. Seu corpo estava coberto de chagas e fedia, por este motivo sua esposa e os demais o abandonam. Vinga-se provocando o dilúvio do qual apenas um homem salvou-se. Novos homens foram criados. Em seguida, Kuyuli criou os peixes e fez voar os pássaros. Forneceu aos homens as plantas comestíveis e revelou a estes o fogo, que roubou do ânus de sua avó Pëlé. Uma vez cumprido seu papel, Kuyuli subiu ao céu e perdeu todo contato com os homens” (27).

Neste mesmo relato, aparecem os dois irmãos míticos, Okaia e Kutumo, filhos de Tena e Arumana, primeira mulher da criação, cujo nome deriva do fato dela ser feita a partir do trançado de fibras da arumã, o que, análogo ao barro, falam da natureza substancial (28) da “mãe do mundo”. Barro, terra, vegetais, são expressões do ventre da terra-mãe. Tena, o pai mítico dos gêmeos, toca flauta – à semelhança da figura divina do mundo hindu, Khrisna, encarnação de Vishnu, o aspecto preservador da divindade pessoal Ishwaara, em sua tripla manifestação (trimurti), como Brahma – o criador, Vishnu – o preservador e Shiva – o destruidor. À semelhança dos mitos Tupi-Guarani, Tena se retira do mundo após engravidar Arumana, e seus dois filhos gêmeos partem à busca do pai.

Vimos que o mito dos irmãos gêmeos aparece com bastante frequência entre os povos indígenas de toda América. Entre os Guarayú, os dois filhos de Abaangui; entre os Bakairi, os irmãos Keri e Kame; entre os Kaingang, os irmãos Kaneru e Kamé; entre os Kaduveo, os gêmeos Nãreatedi; entre os Munduruku, Karu-Sakaibê e seu auxiliar-filho Rairu; entre os Araucano do Chile, os irmãos Conquel e Pedíu; nos povos andinos, entre os Yunca, os irmãos Pachacamac e Wichama; entre os Guamachuco os irmãos Apo-Catequil e Piguerao (29).

Na América Central, aparece entre os Quiché-Maya, os atos míticos de Hun Ahpu e Xbalanque no reino Xibalba (30). Muitas vezes os gêmeos míticos são identificados com o Sol e a Lua, embora o Sol e a Lua possam aparecer como irmãos míticos, mas não necessariamente gêmeos. Entre os Karajá, o Ser divino Rãrãresá é urubu-rei e tem como enfeites de sua cabeça o Sol e a Lua; entre os Kalapalo, temos Riti (sol) e Uné (lua). Entre os Bororo, há dois pares de irmãos, um sendo Bakororo e Itubore, e o outro o Sol e a Lua, ou Baitagogo e Akaruio Borogo, ligados ao primeiro par de irmãos como seus respectivos filhos.

A Cosmologia dos povos tradicionais relata a Criação do mundo desde os seus princípios maiores até os vários detalhes, cabendo as diversas responsabilidades a uma multiplicidade de personagens que sintetizam estas funções. Namandu Ru Ete ergue-se sob forma humana, e, em virtude da sabedoria criadora contida em sua própria divindade, engendra tataendy, as chamas-manifestação visível da Divindade, e tatachina, a neblina vivificante. No mundo extremo-oriental, chy designa a energia vital que sustenta todos os seres. Fogo celeste e neblina vivificante são os pilares sutis da existência. Namandu RuEte então concebe e cria o fundamento da linguagem humana (ayvu rapyta), o fundamento do amor (mborayu rapyta) e o fundamento do canto sagrado (mba’e – a’a rapyta). No mito Dêsana, Yeba bëló concebe de seu pensamento a esfera-barriga do universo ëmëkho patolé e os cinco trovões, a cada qual será dado um compartimento na grande maloca-esfera, e serão eles os convocados para a posterior etapa de formação da luz, rios e humanidade.

Feito a primeira diferenciação que extrairá do Caos das trevas indiferenciadas os princípios cósmicos, a convocação dos auxiliares divinos retrata os desdobramentos secundários das operações cosmogônicas. Refletindo profundamente, Namandu Ru Ete evoca de si mesmo (cria) os Namandu Py’aguachu, de corações valorosos, grandes. Cria-os simultaneamente com o reflexo de sua sabedoria, o Sol. Cria Karai RuEte-Karai ChyEte (senhores do fogo e pais dos futuros Karai), Jakaira RuEte-Jakaira ChyEte (senhores da primavera e pais dos futuros Jakaira) e Tupã RuEte-Tupã ChyEte (senhores das águas e pais dos futuros Tupã). Os primeiros, cuja morada é ao Leste, vigiarão as chamas em que Nande Ru se inspirou. Levantam as chamas na primavera, cujo ruído de crepitar são os trovões no Oriente, e alojam as chamas sagradas pelo topo da cabeça. Na tradição hindu, o sétimo chakra (30A), sahasrâra, também chamado brâhmarandra, está simbòlicamente localizado no topo da cabeça, por onde se dá a união espiritual última, abrindo-se as mil pétalas da lótus-fonte do néctar da imortalidade (31).

Os Jakaira RuEte vigiam a fonte da neblina que engendra as palavras inspiradas e alojarão no topo da cabeça a neblina vivificante. Os Tupã RuEte, cuja morada é no Oeste, vigiam o extenso mar e ramificações, e como chuvas inspiram a moderação e a temperança no centro do coração, a harmonia e o refrescar para que as leis que regem o amor não produzam excessivo calor nos futuros filhos e filhas amadas (32).

Segue-se os deuses menores, “os que têm umbigo, os engendrados”, Karai Py’aguachu, Jakaira Py’aguachu e Tupã Py’aguachu. Abaixo deles estão os agentes de destruição, que perseguem as entidades malévolas (Namandu Avaeté, Namandu Rekoe, Namandu Kuchuvi) e os mensageiros mansos, benévolos (Tupã Aguyjei, Tupã Ne’ëngija). Os Ambá, moradas dos deuses Mbyá, estão no centro do firmamento, em ambos os lados da trajetória do Sol. Nas regiões celestes ao Norte e Sul da órbita do Sol estão os deuses das outras raças.

Yeba bëló, a avó do universo, percebendo que os cinco homens-trovões não conseguiriam cumprir suas ordens de feitura da luz e da futura humanidade, “mascou ipadu, fumou cigarro e da sua fumaça formou-se um ser invisível, que não tinha corpo, não se podia ver nem tocar. Yeba bëló agarrou-o e o envolveu no pari (trançado de talas de miriti com fio de tucum) que lhe servia de defesa, chamado weré imikalu (defesa, pari). Estava agindo como as mulheres quando dão à luz. Depois de o ter pego com o pari, saudou-o dizendo: Ëmëkho sulãn Panlãmin, universo, palavra cerimonial, bisneto). Seu segundo nome é Yebá ngoamãn (terra, criador). Yebá bëló disse a Yebá ngoamãn: “Mandei os ëmekho ulãn (universo, irmãos) fazerem as camadas do universo e a futura humanidade. Eles não souberam fazê-lo. Faça você que hei de guiá-lo”. E ele aceitou a palavra da avó do universo. Saudou-a dizendo: Ëmëkho sulãn nekhó (universo, palavra cerimonial, tataravó) (33).

Notas

(l) – Kumu, Umusin Panlõn e Kenhiri, Tolaman- A mitologia heróica dos indios Desâna: Antes o Mundo não existia, p. 51. São Paulo: Liv. Cultura Ed., l980.

(2)- Cadógan, León, Ayvu Rapyta, Boletim no. 227, Antropologia no. 5, FFLCHUSP, SP, p.13.

(3)- Nimuendaju, C. – em As Lendas da Criação e Destruição do Mundo como fundamentos da religião dos Apopocuva-Guarani, p.155, São Paulo: Hucitec, l987. (Apenas ao senso comum parece incompreensível a ideia do princípio do mundo “brotar de si mesmo”. Metafisicamente, a Origem primordial possui em si mesmo, como princípio eterno, a possibilidade do Ser, que lhe é a manifestação contida em estado potencial dentro da Origem, que é o “si mesmo” deste princípio cósmico, entendido o Cosmos como o conjunto dos mundos manifestos. O que é carente de suficiência é a noção moderna do mundo ter-se originado da explosão de uma “massa concentrada de energia “(conhecida como a concepção do Big-Bang), sem que se compreenda qual a origem dessa massa energética original, como se fôsse um “algo aí” dado, uma realidade limitada carente de substrato superior. O esforço das ciências modernas em “destronar” a necessidade ontológica do fundamento Absoluto revela a pretensão secularizante deste tipo de formulação, mas que objetivamente examinado, tenta uma visão alternativa que carece de sustentação compreensiva.

(4)- Cadógan, Leon- op.cit.p.15.

(5)- Os símbolos são a linguagem por excelência das verdades metafísicas. Sintéticos e diretos, os símbolos traduzem essas verdades para a intuição da mente humana. A ideia moderna de que os símbolos são criações arbitrárias da mente humana não encontra lugar na visão dos povos tradicionais e na própria observação da Natureza: “Tudo o que é, sob qualquer modo que seja, participa necessàriamente dos princípios universais e nada é senão por participação nestes princípios, que são as essências eternas e imutáveis contidas na permanente atualidade do Intelecto divino; por consequência, pode se dizer que todas as coisas, por mais contingentes que sejam em si mesmas, traduzem e representam os princípios à sua maneira e segundo sua ordem de existência, pois, de outro modo, não seriam senão um puro nada. Assim, de uma ordem à outra, todas as coisas se encadeiam e se correspondem para concorrer à harmonia universal e total, pois a harmonia (…) não é nenhuma outra coisa senão o reflexo da Unidade principial (grifo meu) na multiplicidade do mundo manifestado ;e é esta correspondência que é o verdadeiro fundamento do simbolismo. Eis porque as leis de um domínio inferior podem sempre ser tomadas para simbolizar as realidades de uma ordem superior, onde elas têm sua razão profunda, que é ao mesmo tempo seu princípio e seu fim, e podemos assinalar de passagem, nesta ocasião, o êrro das modernas interpretações “naturalistas” das antigas doutrinas tradicionais, interpretações que invertem pura e simplesmente a hierarquia das relações entre as diferentes ordens de realidades. Por exemplo, para não levar em conta senão uma das teorias mais disseminadas em nossos dias, os símbolos ou os mitos jamais tiveram por papel representar o movimento dos astros, mas o que é verdade é que neles encontramos frequentemente, figuras inspiradas neste movimento e destinadas a exprimir analògicamente coisa inteiramente outra, porque as leis deste movimento traduzem fisicamente os princípios metafisicos de que dependem.” (Guénon, René- Autorité Spirituel e Pouvoir Temporel. Paris: Vega, l976, p.22-3.

(5A)- Também no Hinduísmo, as posturas (asanas) são importantes, tanto as de meditação, sentadas, como as da prática da Hatha-Yoga.

(6)- Cadógan, Leon- op. cit., p.13.

(7)- Cadógan, Leon- op. cit., p.17.

(8)- Ribeiro, Berta G.- Dicionário de Artesanato Indígena. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/ São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1988, Col. Reconquista do Brasil, 3, vol. 4, p. 255. Os bancos variam de forma, conforme o grupo indígena: circulares, concavolineos (como dos Tukano), côncavo-ovalado (Assurini e WaiWai), cupular (Tukuna), na forma de peixes (Aweti), de aves (como dos grupos do alto Xingu e Karajá), quadrúpedes (Tukuna, Juruna, Makuxi), retangular (Kaiwá), apoiado em três pés (Makuxi) e outros. Poderíamos acrescentar os escabelos, assentos ao rés do chão, usados geralmente pelas mulheres, feitos de couro (Kadiwéu, Bororo), pecíolo de buriti (Kuikuro) e carapaças de tartaruga ou tatu, frequente em todas aldeias.

(8A) Um símbolo análogo a este é o do trono, que aparece sob muitas outras formas entre os povos tradicionais: Trono – o assento da autoridade, conhecimento e da lei, espiritual e temporal. O trono é erguido sobre um estrado como o centro do mundo entre o céu e a terra. Simboliza também o que é nascido miraculosamente, esculpido em tronos de simbolismo especial, como o trono do dragão, o lótus ou o trono do leão. O colo da Grande Mãe, como Rainha do Céu, é simbólico do trono…”. Cooper, J.C.- An Illustrated Encyclopedia of Traditional Symbols. London: Thames and Hudson, 1982, p.171-2.

(9)- Cadógan, Leon- op.cit.p.17.

(10)-Nimuendaju, Curt – op.cit.p.73.

(11)- Ipadu = coca, em língua geral. Arbusto cujas folhas são tostadas e socadas em pilão especial. São misturados à cinza de uma espécie de embaúba. O pó é mascado e engolido. A avó do universo faz-se a si mesma de seis coisas invisíveis que existia: sé-kali (bancos), salipu (suportes de panelas), kuásulu pu (cuias), kuasalu verá (cuias, ipadu), dehkë iuhku verá pogá kuá (pés de maniva, ipadu, tapioca, cuia), muhlun iuhku (cigarros). Kumu U.P., Tolamán K.- op.cit., p.51. (A tradução literal das palavras em dêsana, segundo Berta Ribeiro, permitiria inferir a estrutura do pensamento desse povo. Por exemplo, alun sali kuli = beiju, colocar, balaio, ou seja, balaio para colocar beiju. Cf. explicação, p. 33-36

(12)- Kumu U.P., Tolamán K.- op.cit., p.51-2.

(33)- Cadogan, Leon- op.cit., p.13.

(14)- Nimuendaju, Curt – op.cit, p.155 e p.68

(14A)- Brown, Joseph Epes – La Pipa Sagrada. Oklahoma, 1953, p.45-50.

(15)- Guenón, René – “El Corazon irradiante y el corazon en llamas” in Simbolos Fundamentales de La Ciencia Sagrada. Buenos Aires: Ed.Univ.de B.Aires, 1976, p.364.

(15A)- De la Vega Inca, Garcilaso – Comentários Reales, Livro Noveno, cap. X. Peru: Ed. Mercúrio, p.144.

(16)- Também no Budismo, como via predominantemente interior, a Natureza em sua face impermanente recebe maior inflexão quanto aos perigos do apego, seja à natureza fenomênica exterior, seja interior ao homem (sua mente e corpo). Mas o Budismo jamais confundiu a necessidade desse alerta e desapego com uma violência sobre os seres da natureza. Haja visto como em sua prédica: que todos os seres sejam felizes e possam seguir o seu caminho de Buddha, a Natureza é respeitada e cultivada pelos budistas de todo o mundo, independente de sua particulariedade cultural-geográfica.

(16A)- Leite, Serafim – Cartas dos Primeiros Jesuitas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, 1954, p150.

(17)- Guenon, René- op.cit. p..364. Guénon esclarece que “o hálito refere-se à luz, como símbolo do espírito, essencialmente idêntico à inteligência, enquanto o sangue é o veículo do ‘calor vivificante’, ligado ao papel “vital” do princípio que é centro do ser”. Também Aristóteles assimila a vida orgânica ao calor.

(18)- Godoy, Roberto y Olmo, Angel- Textos de Cronistas de Indias y Poemas Precolombianos. Madrid: Ed. Nacional, 1979, p.187.

(19) Guénon,René- “L’Omphalos et les Bétyles”, in Le Roi du Monde. Paris: Ed. Traditionelles, 1950, p.71-72. Guénon mostra outras correlações de Omphalos, ao referí-la à pedra sagrada, bétilo, como no hebreu Beith-El , “casa de Deus”, lugar de manifestação do Senhor a Jacob quando este dormia recostado sobre esta pedra, que passaria daí a ser um lugar consagrado como “casa de Deus e porta dos Céus”. Guénon também mostra como ao invés de pedra, o mesmo símbolo pode aparecer na forma de outeiro (como na China, a terra das “cinco regiões”, designando os quatro pontos cardeais e o centro), elevação, tumulus e ilha (como “a ilha dos quatro mestres”, na China e Irlanda).

(20)- Guasch, Antonio- Diccionario Castellano-Guarani y Guarani-Castellano. Assuncion: Ed Loyola, 1981, p.682.

(21)- Kumu,U. e Tolamàn,K.- op.cit., p.52.

(22)- Kumu,U. e Tolamãn,K.- op.cit., p .53.

(22A)- Kumu,U. e Tolamãn,K.- op.cit., p.35.

(23)- A ênfase monoteísta (“o Deus único”) das religiões semíticas, se compreensível e correta sob certa perspectiva, gera por outro lado certa dificuldade de compreensão da relação unidade-multiplicidade que une os princípios celestes, fazendo com que os representantes (leigos ou missionários) dessas religiões incorram muitas vezes no equívoco de verem as tradições antigas como “politeístas”. Equívoco análogo ao da interpretação das tradições indígenas como “religião naturalista”. Para os hindus, “Deus é uma essência sem dualidade (adwaita), mas não sem relações (vishishdâdwaita)”. Coomaraswamy, Ananda – Hindouisme et Bouddhisme. France: Gallimard, 1980, p.25. É verdade que nos períodos de decadência de uma Tradição, a relação de seus membros com os “muitos deuses” tende a se transformar em culto idolátrico, pois desvincula os princípios secundários de sua Raiz Suprema. Esta era, por exemplo, a situação do culto dos povos da Arábia na época de Mohamed, o Profeta fundador da tradição islâmica. Mas certamente não é à luz dessa compreensão que se impinge a conotativa expressão de “politeístas” aos povos antigos.

(24)- Nimuendaju, C. – op.cit., p.155.

(25)- Metraux, Alfred- “A Religião dos Tupinambás”, p.22, SP, Ed.Nacional-EDUSP, 1979.

(26)- Metraux, A.- op.cit., p.21-22. (Nas notas (a) a este cap.II, p.29, Estevão Pinto comenta que o mito dos gêmeos existe entre os tupis, os guaraius, os mundurucus, os juracaris, os bacairis, os tamanacus, os giraras, os araucanos e, aparentemente, também entre os carajás).

(27)- Hurault, J. Marcel – Les Indiens Wayana de la Guyane Française : structure sociale et coutume familiale. Paris: ORSTOM, 1968. (Citado em “Povos Indígenas no Brasil”, 3 Amapá/Norte do Pará, p.157, SP, CEDI, 1983; Schoepf, Daniel – Le Japu faiseur de perles: um mythe des Indiens Wayana-Aparai du Brésil. Geneve: Museu d’Ethnographie, 1978.

(28)- Segundo as doutrinas tradicionais, para a constituição da existência, o Ser universal se polariza em dois princípios opostos e complementares: o pólo substancial e o pólo essencial, cujos nomes são Prakriti-Purusha (na tradição hindu), Yin-Yang (no Taoismo chinês), Matéria prima e Forma (para os escolásticos), entre outros. Embora estes princípios não existam de forma pura na existência, é da união deles que derivam todos os seres do universo cósmico. O termo substancial, embora em si não possua qualidade ou forma alguma, é o suporte maternal apto a receber todas as formas que dela será extraído pela ação de presença do pólo essencial. O termo sânscrito para o polo substancial, Prakriti, esclarece muito do seu sentido: é um termo feminino e formado pela raiz verbal KR (fazer, colocar) e pra (preposição que dá a noção de “diante de”. Portanto o pólo substancial é o que está pré-ssuposto, pré-posto. O uso moderno do termo “material” é impreciso e dá margem a confusões. A Física moderna tem mostrado que o que se chamou de “matéria” não é nada mais do que energias vibratórias em permanente fluxo. O termo escolástico “matéria-prima” nada tem a ver com o termo moderno “matéria”, pois em acôrdo com as várias doutrinas tradicionais, designa um princípio cosmológico.

(29)- Baldus, Herbert – Ensaios de Etnologia Brasileira. São Paulo: Brasiliense, vol.101, 1979, p.108-53; Laraia, Roque de Barros – “o Sol e a Lua na mitologia Xinguana”, in Mito e Linguagem Social. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970, p. 107-134; Melatti, J.Cesar – Indios do Brasil. Brasília: Hucitec, 1987, p. 139-40, Schaden, Egon – A Mitologia Heróica das Tribos Indígenas do Brasil. MEC, 1959.

(30)- Krickeberg, Walter – Mitos y Leyendas de los Aztecas, Incas, Mayas e Muiscas. México: Fondo de Cultura Economico, 1991.

(30A)- Na tradição hindu, o nível ou forma sutil da individualidade humana é constituído de uma série de artérias sutis e luminosas chamadas nadis. “Os plexus nervosos, ou mais exatamente seus correspondentes na forma sutil (na medida em que esta está ligada à forma corporal) são designados simbolicamente como “rodas” ( chakras ) ou ainda como “lótus” (padmas ou kamalas). Guénon, René – L’ Homme et Son Devenir selon le Vedanta. Paris: Ed. Traditionelles, 1976, p. 161. Guénon esclarece que em relação às condições póstumas do ser humano, o tôpo da cabeça desempenha importante papel em várias tradições, como a tonsura dos sacerdotes católicos ou entre vários povos indígenas, como por exemplo os Xavante.

(31)- Sangita- Ratnakara of Sarngadeva. R.K. Shringy and Prem Lata Sharma. India: Motilal Banarsidas, 1978, p.95-6.

(32) – Cadógan, Leon – op.cit., p.31-32. O autor observa com propriedade que “o fato de ocupar Tupã RuEte o quinto lugar na teogonia Mbyá-guarani e lugares mais secundários ainda em outras parcialidades guarani, dá razão a Nimuendaju quando fala do “abuso que fizeram de seu nome os missionários que o introduziram para designação do Deus cristão em todo Brasil, Paraguai, grande parte da Argentina e Bolivia”, op.cit., p.36.

(33)- Kumu,U.P., Kenhiri,T. – op.cit., p.54-5.

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