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a Modernidade aos olhos das Tradições hindu, budista e taoísta

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Este trabalho faz parte de um conjunto de reflexões e pesquisas que estamos desenvolvendo sobre as doutrinas tradicionais da Ásia e do mundo indígena. Agradecemos a todos os que têm contribuído para essa realização.

A manhã se abriu ensolarada. Ontem, chovera quase sem descanso, aquela chuva miúda e fria, cobrindo o espaço de cá embaixo das nuvens de um tom melancólico e úmido. A modernidade tem sido mostrada e vivida como algo semelhante. A Idade Média teria sido a Idade das trevas, dominada pela ignorância e opressão de um sistema feudal apoiado pelo obscurantismo de um Cristiatnismo imposto pela força de uma fé avessa à razão e à liberdade.
A partir do séc. XIV d.C. o mundo europeu desencadearia uma série de movimentos de transformação em todas as áreas da existência, mudanças de tal amplitude que em pouco tempo o mundo medieval europeu ficaria como que algo de um passado longínquo e esquecido. O que se designa por modernidade configura um estado de espírito psicocultural que aos poucos se imporia como visão dominante. Na economia, os grandes descobrimentos abririam canais para uma intensa circulação de produtos que propiciariam a vitalização do comércio e a emergência de uma classe burguesa mercantil que forçaria os muros do mundo restrito feudal, colocando à mercê da industrialização grandes contingentes de servos desapropriados de seus meios de produção e agora uma massa de proletários com apenas sua força de trabalho para vender às portas das indústrias capitalistas.
Na política, a emergência do Estado-nação, forjado na inspiração de Maquiavel, com sua noção do Príncipe articulador de talento e condições históricas, inaugurando uma visão secular da orientação política. O Estado-nação pode ser visto sob vários ângulos. Por um lado, permitiu a inclusão de grupos sociais de múltiplas origens, pensamentos, religiões, em uma estrutura democrática, de direitos constitucionais. Esse é um aspecto de proteção, conferida pela condição de nacionalidade comum a seus cidadãos. Por outro lado, o sentimento de nacionalidade pode criar uma concepção de identidade absoluta e absolutizante, de exclusão e aversão ao “outro de outra nacionalidade”, um modo rígido de “nacionalismo” que pode conduzir ao fanatismo ideológico, autoritário e violento, como já ocorreu e pode ocorrer novamente nestes tempos da modernidade.
No domínio da cultura, o domínio progressivo da razão contra a fé religiosa cristã, o abandono da religião como visão totalizante, a emergência de uma visão de ciência, aberta ao experimentalismo, à pesquisa, à dúvida. É verdade que as ciências modernas trouxeram muitos benefícios nas várias áreas da vida humana. A questão se coloca quando as concepções científicas modernas pretendem se colocar no lugar absoluto de acesso às verdades.
No campo psicológico, o predomínio da noção de indivíduo/individualidade do homem como identidade inerente, plenamente real, e cujos desejos encontrariam oportunidade e direito de se desvencilharem das controles dos parâmetros cristãos limitantes. Classes burguesas e individualismo marcarão a ascensão do romance prosáico em que os personagens são agora indivíduos, em detrimento do epopéico e da literatura referencial e arquetípica.
Ser original, inovador, novo, são as ênfases do moderno, banindo o tradicional como repetitivo, reiterativo e não-criativo. A Modernidade será defendida como uma aspiração à revolução permanente, o legítimo desejo de constante modificação e inovação. Modificação e inovação são pertinentes e necessárias, mas sob qual perspectiva? Uma teoria do Progresso surgiria nas especulações de Darwin, Spencer e Comte, buscando um sentido na Natureza e na História humana, que fosse uma alternativa para a concepção cosmogônica cristã de um Deus criador. As especulações de Darwin sobre as espécies iriam fornecer as referências para a formulação de uma visão de Evolução, que através da diferenciação e seleção natural das mutações mais adaptativas encadearia o processo evolutivo dos seres, do simples ao complexo, do homogêneo ao heterogêneo. Como as ondas coloniais se deparariam com povos de múltiplas formas de viver e pensar distintos dos europeus, os pensadores ocidentais se esforçariam em articular suas noções de progresso e evolução de modo a correlacionar as suas diretrizes econômicas, políticas e ideológicas com os dados trazidos pela presença de povos com modos existenciais não só distintos como opostos à sua concepção de vida.
Das concepções do evolucionismo sairiam muitas hipóteses de autores como Morgan, e sua proposição das etapas do primitivo à civilização, que tanto influenciou Engels, em seu ensaio sobre a origem da família, da propriedade privada e do Estado. A despeito das diferenças de matizes, a visão da Modernidade aberta pelo mundo europeu pós-século XIV como uma marcha ascendente de crescente expansão material, liberdade e abertura, se constituiria aos poucos como a teoria dominante de visão de mundo e futuro. Expansão, liberdade e abertura: para qual perspectiva? A quais custos? Sob qual sentido de vida?
O fascínio pelos artefatos tecnológicos que se superam a cada dia fortifica a visão de uma era de expansão material sem limites rumo às estrelas, aberta pela Modernidade. Mas essa breve caracterização da Modernidade deve ser tomada apenas como linhas gerais introdutórias, seria simplismo concluir que daria conta de toda complexidade desse processo heterogêneo marcado por rupturas, contradições e impasses desde seu desencadeamento até os dias atuais, já referidos como pós-modernidade em sua etapa de globalização.
Deste vasto tema da Modernidade, destacaremos apenas um de seus paradigmas-emblemáticos para exame: o de que a modernidade significou o desencadear de uma libertação que tem na razão um de seus suportes maiores. Vamos examinar esse paradigma e seus vários significados segundo pontos de vista não-ocidentais modernos, aos olhos dos princípios das tradições milenares asiáticas: a tradição hindu, budista e taoísta. A compreensão do alto grau de elaboração espiritual que marca o universo cognitivo das milenares trajetórias das tradições orientais exigiria uma explicitação mais ampla. Dado os limites deste texto, teremos de nos restringir a uma síntese dos conceitos necessários.
Como ponto de partida, temos de compreender o que significa o conceito de Tradição, de crucial importância e bastante mal entendido, quando não objeto de menosprezo pelo mundo moderno. A palavra Tradição, seu verdadeiro significado e conteúdo, aos poucos se perdeu no Ocidente moderno, passando a ser associado ao costume, o repetitivo e mecânico, o passado. Este conceito foi apropriado por instituições de ideologia abertamente reacionárias, para designar realidades que só na aparência parecem ter algo a ver com seu sentido verdadeiro. Também tem sido usado para referir-se ao folclórico, cultivado como reminiscência de um passado, ou o atrasado, o fora de época, ultrapassado pela História. O Ocidente, auferindo uma noção valorativa de progresso e evolução a partir de suas interpretações de um período de apenas cinco séculos de sua história, rotulou o termo Tradição como caractere de povos sem escrita e sem domínio tecnológico, como conjunto de crenças fetichistas e supersticiosas, sem base científica, dos povos primitivos. O retrógrado, contra o progresso. Mas vejamos.
Iniciando pela tradição hindu, de acordo com sua sabedoria, a existência, o mundo, não podem ser compreendidos quando se perde a intelecção do que possam ser seus princípios fundantes: podemos entender o que seja um galho em si, se secionada de sua verdade inclusiva, a árvore? Não é preciso ter ido à escola para percebermos que o nosso mundo se caracteriza por ser uma realidade limitada. Queiramos aceitar ou não, a todo instante nossa percepção nos relembra que, como seres humanos, somos limitados: doença, morte e finitude andam juntas com o homem. Mas o limitado não tem razão suficiente em si. À semelhança do exemplo do galho, se o percebemos como limitado em seu contorno fechado é porque o tomamos como objeto supostamente destacado da árvore. Mas, ontològicamente, o que é mais limitado só pode ter seu fundamento no que é menos limitado, o galho tem na árvore seu princípio. Abrindo essa operação ontológica, a árvore por sua vez só existe a partir do espaço em que se integra e se nutre. Integralizando essa operação, que é simultaneamente reintegrativa e cognitiva, chegamos ao Infinito Transcendente, que é simultaneamente o ponto de partida necessário. Partida para a manifestação dos mundos relativos e limitados como o nosso, e ao mesmo tempo chegada, quando se busca o retorno à Fonte.
Este é o esteio central de toda a estrutura tradicional hindu, segundo seus livros sacros – dos quais os Vêda são considerados a autoridade última – e suas autoridades tradicionais legítimas. Toda realidade fenomênica emana da Realidade Última.
Em torno do tema de Brahman como Absoluto e Realidade Última, há na tradição hindu uma enorme quantidade de fontes e elaboração doutrinal. De acordo com um de seus comentadores hindus, Brahman é “uma essência sem dualidade (adwaita)” (2). Desta colocação, baseada nos textos-comentários hindus, destaco a noção de Absoluto como adwaita, palavra formada pelo prefixo a (não) e dvi (dois): não-dualidade. Os hindus consideram a noção de não-dualidade como ontológicamente acima do conceito de unidade. Para ser mais preciso, como não-dualidade, adwaita aponta para a noção supra-ontológica de Brahman como Supra-Ser (o que é bem outra coisa do que a ideia comum de Super-Ser, como apenas aumentativo de ser). Do Supra-Ser procede o Ser como Determinação primeira.
Se compararmos a concepção hindu de Brahman como Supra-Ser, Realidade Última, com uma tradição vizinha à Índia, a tradição taoísta da China, encontramos no Tao-Te-King de Lao-Tsé algo análogo, referido como o Tao sem Nome: “o Tao, que pode ser expressado, não é o Tao perpétuo. O nome, que pode ser nomeado, não é o nome perpétuo. Sem nome, é Princípio do Céu e da Terra, e com nome, a Mãe dos dez mil seres” (3). Sua Transcendência aparece em seus atributos: Ch’ung (oquidade), Yüan (abismo e profundidade), Ku Shen (Espírito abismal), Hsu (vazio). O Inominável, porque como Realidade Suprema é nirguna, palavra sanscrita que provém do prefixo negativo nis (não) e guna (qualificação): não-qualificado, não-caracterizado.
Como lugar da Possibilidade Universal, o Princípio Supremo contém em si todas as possibilidades, tanto as de não-manifestação como as de manifestação. São estas últimas que são chamadas a se manifestarem enquanto Cosmos ou o domínio dos mundos manifestos, portanto relativos e condicionados, limitados. A tradição hindu sustenta que toda a estrutura existencial, sinônimo de Cosmos, está fundada em bases metafísicas, entendida aqui como os princípios universais enraizados na Realidade Transcendente Última. Estes princípios articulam o mundo humano e cósmico com o Transcendente, sustentam a vida e transmitem o conhecimento que há milênios orienta o modo de viver hindu, entendido o viver em sua complexidade de níveis, como a atividade cognitiva, as práticas rituais, as formas de parentesco, de organização do espaço, do trabalho, e tudo o mais. Esta Realidade Transcendente Última constitui a Fonte-Cabeceira e a Fonte-Foz do rio existencial da tradição hindu. Toda a existência cósmica – em seus múltiplos planos – é uma manifestação relativa de certas possibilidades contidas no Absoluto.
Parte-se do Absoluto como raiz metafísica última, princípio maior do qual decorre a existência cosmogonica. De dentro da estrutura cosmogonica decorrem os múltiplos mundos, inclusive a sociedade humana, desenrolando-se no tempo e no espaço. Enquanto categorias cognitivas, os princípios universais que suportam o complexíssimo universo de trançados que liga cada aspecto do Cosmos com o Absoluto referem-se ao domínio da Metafísica. Termo grego, a Metafísica tem seu equivalente nas referências cognitivas do Vedanta, um dos seis pontos de vista com que se estudam os Vêda e que dizem respeito aos suportes intelectivos propiciadores para a aproximação do conhecimento de Brahman como absolutidade e finalidade última de toda a tradição hindu.
Do grego meta, “para além” e Fisis, “Física”, a compreensão do termo Metafísica exige que entendamos o que os gregos significavam com o termo Fisis. Para os gregos, o termo Fisis, Física, tinha uma acepção bastante diferente daquela que seria utilizada pelos pensadores modernos. Para os gregos designava a Natureza como sinônimo de Cosmos, no sentido amplo do mundo manifesto e relativo, que em certas linguagens teológicas tem seu aproximativo na acepção de “mundo criado”, um modo ordenado e limitado de ser, extraído de dentro da indiferenciação da substancia primordial. Em outro momento haveríamos de analisar a diferença entre essa concepção grega ou hindu de Natureza ou Fisis com aquela utilizada pela Antropologia em sua dicotomia Natureza-Cultura, e as implicações desta diferença. Para os gregos, a Física, designando “a ciência da Natureza sem nenhuma restrição, é então a ciência que se relaciona com as leis mais gerais do ‘devir’, porque ‘Natureza’ e ‘devir’ são, no fundo, sinônimos e era assim que o entendiam os gregos, nomeadamente Aristóteles; se existem ciências particulares referindo-se à mesma ordem, são apenas ‘especificações’ da Física para este ou aquele domínio estritamente determinado” (4).
A Metafísica refere-se ao supracósmico, ao supranatural, ao domínio dos princípios que estão para além do Cosmos, mas que ao mesmo tempo permitem e sustentam a existência do Cosmos. Em nosso exemplo da árvore, os galhos, flores e frutos seria a imagem simbólica do Cosmos, e a raiz o supracósmico fundante, oculto nas profundezas do invisível. A Metafísica designa tanto as leis que ligam a Natureza (Fisis, o Cosmos ou mundo criado), aos seus princípios transcendentes, como esses próprios princípios universais, assim como conhecimento desses princípios que estão para além da Natureza, da Fisis, como entendiam os gregos e outros povos orientais, como a tradição hindu: “Para Aristóteles, a Física era apenas segunda em relação à Metafísica, quer dizer que ela estava dependente desta, no fundo era apenas uma aplicação ao domínio da Natureza dos princípios superiores à Natureza e que se refletem nas suas leis…” (5). A Metafísica é o fio de Ariadne que liga a Natureza aos seus princípios supra-Natureza, o Transcendente. Poderíamos agora nos perguntar no quê se corporifica, para os homens, a Metafísica como elo que liga e clarifica os nexos entre a Fonte-Raiz Transcendente e os mundos manifestos e relativos.
Em nosso exemplo da árvore, este elo, o Tronco, é a Tradição, Áxis Mundi, entendido como o corpo de princípios metafísicos que mantém os nexos de ligação entre o Céu e a Terra, aqui designativos dos Princípios e da manifestação existencial. Como Eixo do Mundo, a Tradição traduz para seu povo as leis metafísicas que regerão os múltiplos aspectos da vida deste povo, articulando a existência com o transcendente, de acordo com essas leis, e oferecendo os suportes para o retorno ao original transcendente. Tradição significa tradução (das verdades metafísicas para a mente humana) e transmissão (destas verdades e ritos necessários para o acesso às suas raízes transcendentes). O corpo doutrinal de uma Tradição como que expressa a descida do Transcendente no Imanente, evitando que este se torne opaco aos homens e ao mesmo tempo servindo de veículo de apoio para seu retorno à sua origem celeste.
A Fundação do Mundo se revelaria através do Mito, e o retorno às origens míticas se faria através dos Ritos que permeiam cada aspecto da vida de um povo tradicional, garantindo o nexo de sentido entre sua dimensão cosmogônica e sua raiz transcendente. Os ritos são orientados pelo corpo doutrinal metafísico destas tradições, seja em sua forma oral, como nas recitações míticas indígenas, ou em suas formas escritas, como nos textos sacros da tradição hindu. O Rito re-atualiza o Mito e re-põe os homens no Centro do Mundo, por onde se busca manter o contato com a Realidade fundadora de suas vidas (7).
Para a tradição hindu, o Cosmos é a manifestação de certas possibilidades contidas no Absoluto. Utilizando uma linguagem platônica equivalente, o Cosmos é a manifestação, de modo distintivo, de certas possibilidades contidas nos Arquétipos divinos. Se é dito que Brahman é nirguna (não-qualificado), também é dito que é, ao mesmo tempo, saguna (qualificado), ou seja, Brahman é uma essência sem dualidade (adwaita), “mas não sem relações (vishistâdwaita). Não pode ser apreendido senão que Essência (asti), mas esta Essência subsiste em uma natureza dupla, como ser e devir” (8). Em sua natureza Inominada, como nirguna, Brahman vive no silencioso repouso imutável, na anterioridade do Céu e da Terra. Por isso é referido como Não-Ser, sinônimo de Supra-Ser, e é o princípio do Ser, como sua Determinação primeira. Do mesmo modo dizem os taoístas: do Tao sem Nome, o Absoluto, surge o Um, a Unidade Primordial, o Ser como princípio de todos os seres: “os dez mil seres nascem do Ser e o Ser nasce do Não-Ser”.
Para que as possibilidades de manifestação venham à existência, a Unidade primordial se polariza, surgindo o Dois, os dois princípios fundamentais da existência, o pólo ativo e essencial, designado na tradição hindu como Purusha, e o pólo passivo e substancial, Prakriti. Reencontramos concepção análoga entre os taoístas: “o Tao engendra o Uno, o Uno engendra o Dois, o Dois engendra o Três, e o Três engendra os dez mil seres. Os dez mil seres levam em suas costas o Yin (obscuridade) e em seus braços o Yang (luz), e o vapor da oquidade permanece harmonioso” (9).
Um ciclo cósmico traz em si, enquanto potencialidade, um conjunto de possibilidades de manifestação. O desenrolamento do processo cósmico se dará segundo um desenvolvimento no espaço e na sucessão (10). O processo cósmico será a atualização das possibilidades de manifestação contidas em potência no estado embrionário do Cosmos, referido como Brahmânda, “o Ovo do Mundo”.
Esse conjunto de possibilidades não se distribui embrionariamente de modo homogêneo, mas segundo uma hierarquia em que as possibilidades superiores se manifestam no início do ciclo cósmico, indo para as possibilidades inferiores conforme o ciclo se desenvolve, até sua completação e estancamento. Significa que a tradição afirma um sentido descendente e finito de todo ciclo cósmico, o oposto da visão moderna do progresso ascendente e indefinido de evolução humana, visão esta do evolucionismo darwiniano que não encontramos respaldo em nenhuma doutrina tradicional (11).
Quando falamos em superior-inferior ou ascendente-descendente, devemos nos perguntar em relação à quais sistemas de referência posicionamos os dados. Segundo os hindus, são superiores as possibilidades que se manifestarão no início do ciclo cósmico porque são aquelas mais próximas do pólo essencial, carregadas, portanto, de maior grau de espiritualidade, e mais próximas da justiça e da verdade espiritual. A marcha do ciclo cósmico e humano é a do obscurecimento progressivo da espiritualidade original, e isto porque “o desenvolvimento de toda a manifestação implica necessariamente um afastamento cada vez maior do princípio do qual ela procede; partindo do ponto mais alto, ela tende forçosamente para baixo, e, como os corpos pesados, tende para esse sentido com uma velocidade sem cessar crescente, até que encontra finalmente um ponto de paragem. Esta queda poderia ser caracterizada como uma materialização progressiva…” (12).
Ao invés de evolução ascendente, a tradição hindu afirma a tendência descendente-materializante. E isto segundo uma visão cíclica do tempo, da História e da humanidade, tendo um começo, desenvolvimento e encerramento, e não retilíneo e indefinidamente progressivo ascendente, como supõe o Evolucionismo. Tendo um começo, terá um fim, diz o Buddha. “Nos seres, à robustez segue a velhice, que é falta do Tao. E sem Tao tudo se acaba. O homem vivo é brando, o morto é duro e rígido. As plantas vivas são flexíveis e tenras, as mortas são duras e secas. Daquele que possui muita Virtude se diz que é como criança. Tem os ossos brandos e os músculos flexíveis…” (Tao-te-King, Lao-Tsé).
Quando a vida era plena, não existia a História
Na época em que a vida na terra era plena, ninguém dava nenhuma atenção aos homens dignos, nem selecionava os homens capazes. Os soberanos eram apenas os galhos mais altos das árvores, e o povo era como cervos na floresta. Eram honestos e corretos, sem imaginar que “estavam cumprindo com o seu dever”. Amavam-se mutuamente, e não sabiam que isto se chamava “amor ao próximo”. Não enganavam a ninguém, e, no entanto, não sabiam ser “homens de confiança”. Podia-se contar com eles, e ignoravam que isto fosse a “boa fé”. Viviam juntos livremente, dando e recebendo, e não sabiam que eram homens de bom coração. Por este motivo, seus feitos não foram narrados. Não se constituíram em história (13).
A visão cíclica e descendente do ciclo humano aparece formulada, na tradição hindu, nas Leis de Manu, que divide o ciclo em quatro fases ou yugas: Satya yuga, a idade da Verdade, Treta yuga, Dwâpara yuga, e por último Kali yuga, a Idade Sombria, aquela em que estamos desde há mais de seis mil anos, agora em sua última etapa. Os budistas tibetanos ainda distinguem uma quinta fase cíclica no Kali yuga, “a Idade em que a corrupção vai de mal a pior” (14). Enquanto a Justiça e a Verdade reinam no Satya Yuga, já nas fases subsequentes o avanço da desespiritualização acelera-se, na medida em que a duração temporal de cada fase diminui na proporção de 4:3:2:1. A despeito do avanço tecnológico, o ciclo caminha para baixo. A referência baixo tem múltiplas significações: materialização, maior dificuldade de acesso mental às verdades transcendentes, racionalismo, desenfreamento do ignorante querer apossar das coisas, destruição da Natureza, exteriorização, corrupção, entre outras.
Se a tendência cósmica e humana é descendente e materializante, por outro lado os hindus consideram que a função da Tradição é a de oferecer os suportes de apoio para a tendência oposta, a de retorno ao princípio, o que não significa tendências sucessivas, mas simultâneas, embora haja períodos de crise e ruptura, com o desaparecimento de certas tradições, a emergência de novas tradições revivificantes – (e nesta visão global se situaria a emergência de tradições como o Cristianismo, o Budismo e outras) – e readaptações em outras. Nisto residiriam as chamadas “descidas divinas”, os Avataras, que na tradição hindu são as sucessivas encarnações de Vishnu, a face da conservação divina.
No livro do Bhagavad-Gita, assim se refere Krishna, considerado a oitava encarnação de Vishnu: “Sempre que o dharma [a Lei, Verdade, a retitude, entre outras acepções (15)] declina, ó filho da dinastia dos Bharata, e há um aumento do adharma (vício, destruição da verdade), então Eu me manifesto” (sloka 7, cap. 4). Segundo os hindus, a próxima encarnação de Vishnu será como Kalki-Avatara, que desta vez virá para encerrar com fogo este ciclo da Humanidade, e o fim de um ciclo significa o início de um novo ciclo.
O caminho ensinado pelo Buddha tem semelhanças e diferenças com relação à doutrina hindu. Seu ensinamento é conhecido como a doutrina das Quatro Nobres Verdades, que devem ser compreendidas e colocadas em prática.
A primeira Nobre Verdade (dukkham ariya saccam): a existência é dukkha, sofrimento:
Agora, bhikkhus, esta é a nobre verdade do sofrimento: nascimento é sofrimento, envelhecimento é sofrimento, enfermidade é sofrimento, morte é sofrimento; tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero são sofrimentos; a união com aquilo que é desprazeroso é sofrimento; a separação daquilo que é prazeroso é sofrimento; não obter o que se deseja é sofrimento; em resumo, os cinco agregados influenciados pelo apego são sofrimento (…) Esta nobre verdade do sofrimento deve ser completamente compreendida (DUKKHAM ARIYA SACCAM, 2009).
A Segunda Nobre Verdade (dukkha-samudayam ariya-saccam): a causa do sofrimento:
Agora, bhikkhus, esta é a nobre verdade da origem do sofrimento: é este desejo que conduz a uma renovada existência, acompanhado pela cobiça e pelo prazer, buscando o prazer aqui e ali; isto é, o desejo pelos prazeres sensuais, o desejo por ser/existir, o desejo por não ser/existir” (…) “Esta nobre verdade da origem do sofrimento deve ser abandonada (DUKKHA-SAMUDAYAM ARIYA-SACCAM, 2009).
A Terceira Nobre Verdade (dukkha-nirodham ariya-saccam): extinguindo-se a causa do sofrimento, extingue-se o efeito, sofrimento:
Agora, bhikkhus, esta é a nobre verdade da cessação do sofrimento: é o desaparecimento e cessação sem deixar vestígios daquele mesmo desejo, abrir mão, descartar, libertar-se, desapegar desse mesmo desejo (…) Esta nobre verdade da cessação do sofrimento deve ser realizada (DUKKHA-NIRODHAM ARIYA-SACCAM, 2009).
A Quarta Nobre Verdade (dukkha-nirodha-gamini-patipada ariya-saccam): o Nobre Óctuplo Caminho (ariya attangika magga)
E qual, bhikkhus, é o caminho do meio para o qual o Tathagata despertou, que faz surgir a visão … que conduz a Nibbana?
É este Nobre Caminho Óctuplo: entendimento correto, pensamento correto, linguagem correta, ação correta, modo de vida correto, esforço correto, consciência atenta correta, concentração correta. Esse, bhikkhus, é o caminho do meio para o qual o Tathagata despertou, que faz surgir a visão, que faz surgir a sabedoria, que conduz à paz, ao conhecimento direto, à iluminação, a Nibbana (SAMYUTTA NIKAYA LVI.11, 2009).
A ênfase do ensinamento do Buddha está em purificar a mente da ignorância, e para isso, toda a prática tem como fundamento aprendermos a ver a realidade como ela é, sem distorções. Significa ver todos os fenômenos corporais e mentais em sua tríplice característica: a impermanência (anicca); o sofrimento e insatisfação (dukkha), e a insubstancialidade de um “eu” ou de um “meu” (anatta). Nesta terceira característica, encontramos a distinção mais importante entre a perspectiva budista e a hindu. No ensinamento do Buddha, a noção de um atman, enquanto “alma” ou “princípio permanente” é considerada uma delusão que deve se abandonada.
Um outro aspecto inexistente nos ensinamentos do Buddha é o de uma entidade suprema denominada de Brahman na tradição hindu: quando Buddha se refere a Brahma, (enquanto Criador segundo a tradição hindu), este é uma divindade também sujeito à lei da impemanência. Por isso, não há no ensinamento budista a ideia hindu da realização espiritual como uma união (yoga) com um Brahman supremo. Isto não significa, entretanto, que no ensinamento do Buddha não haja a noção de uma realidade permanente, incondicionada, Nibbana:
Existe um não-nascido, um não tornado-a-ser, um não-feito, um não-composto; se não fosse por este não-nascido, não tornado-a-ser, não-feito, não-composto, não seria possível neste mundo nenhuma evasão do nascimento, do porvir, do fazer, da composição (Coomaraswamy, apud Udana, 1967) (16).
A lei da impermanência comanda a trajetória de todos os mundos condicionados, em seu turbilhão incessante de nascer e morrer (o samsara), seja os mundos celestes, os terrestres ou os infernais. Tudo o que nasce, está sujeito a se decompor, a desaparecer.
Embora não encontremos nos ensinamentos do Buddha uma referência explícita à noção dos yugas da tradição hindu, a noção de que os ciclos dos mundos samsáricos, ao rebrotarem, tendem para a decadência pode ser encontrada no sutta (sermão) 26 do Digha Nikaya (Os sermões longos do Buddha), que junto a outros quatro Nikayas, formam o Sutta Pitaka, uma das três coleções de ensinamentos, que junto com o Vinaya Pitaka (referente aos códigos de disciplina monástica) e o Abhidhamma Pitaka (referente à estruturação sistemática dos princípios doutrinários apresentados no Sutta Pitaka), formam o Cânon Pali do Budismo Theravada, considerada a escola viva mais antiga do Budismo primitivo.
Neste sutta 26 do Digha Nikaya, o Cakkavatti Sihanada Sutta, Buddha conta como o processo de decadência ocorre progressivamente, iniciando-se com uma época em que reina a lei, a ética, a bem aventurança, para aos poucos ir surgindo os vícios, a perda da ética, da generosidade, da justiça, a brevidade do tempo de vida, etc.
Neste interessante sutta, o final deste percurso é seguido pelo surgimento do futuro Buddha, o Buddha Metteya, ou Maitreya (na língua sânscrita). Embora o processo de decadência narrado pelo Buddha não apareça dividido formalmente nos moldes dos quatro yugas da dourina hindu, é bem plausível vermos neste sermão as evidências da condição de obscuridade espiritual do mundo moderno, agora referido como contemporâneo. Mesmo na perspectiva cristã, encontramos essa sintomática, nas palavras do Cristo sobre o tempo em haverá o “endurecimento dos corações”.
Colocando agora a modernidade aos olhos da tradição hindu e budista, teremos um outro desenho de significações sobre este período da história da humanidade. De um lado, é certo que a modernidade “liberou” certas possibilidades contidas originalmente em potencialidade no ciclo atual: o desenvolvimento das forças produtivas através das quais se potenciou a produção de mercadorias a um nível vertiginoso, em que a reprodução ampliada do capital exige um sucateamento das coisas em velocidade cada vez mais crescente. Mas liberação a que custo, ou dito de outro modo, qual o significado mais amplo desta “liberação”?
Imaginemos que em nosso corpo estivesse um germe de uma virulência mortal, mas que graças ao nosso sistema de defesa imunológico este vírus estivesse constrito. Mas que chegasse o momento em que o sistema imunológico fosse rompido e o vírus se expandisse com violência. O que estava constrito foi “liberado”. Neste caso, o corpo seria entregue à morte. Significa dizer que a noção de “liberação” depende dos contextos e significados com que é interpretada. Os povos indígenas de várias partes do mundo têm alertado repetidas vezes, e sob vários aspectos, sobre algo do que teria sido “liberado” pelo mundo moderno:
Ömame (o criador mítico da humanidade Yanomami e de suas regras culturais) mantinha a xawara (a epidemia do minério) escondida. Ele a mantinha escondida e não queria que os Yanomami mexesse com isto. Ele dizia: não! Não toquem nisso! Por isso ele a escondeu nas profundezas da terra. Ele dizia também: “Se isso fica na superfície da terra todos Yanomami vão começar a morrer à toa!” Tendo falado isso, ele a enterrou bem profundo. Mas hoje, os nabëbë, os brancos, depois de terem descoberto nossa floresta, foram tomados por um desejo frenético de tirar esta xawara do fundo da terra onde Ömame a tinha guardado… A xawara do minério é inimiga dos Yanomami, de vocês também. Ela quer nos matar. Assim, se você começar a ficar doente, depois ela mata você. Por causa disso nós Yanomami estamos muito inquietos (17).
Sintèticamente, aos olhos das várias doutrinas espirituais, a modernidade significou a necessária realização das possibilidades inferiores contidas desde as origens no conjunto global deste ciclo cósmico, necessária, mas nem por isso menos terrível, porque se funda na progressiva ruptura dos nexos metafísicos entre os princípios transcendentes e a existência terrestre humana. A civilização ocidental moderna constitui-se por isso em uma anomalia no conjunto das sociedades humanas e marca o encerramento deste ciclo humano. Do ponto de vista cosmológico, o frenético desejo-impulso de desenvolvimento das forças produtivas, a ponto de ser o motor central do mundo moderno, onde o Banco é a “igreja” do mundo atual, subordinando tudo o mais ao seu imperativo, significa uma vertiginosa descida rumo ao pólo substancial, cuja expressão psicológica é o apego e a insatisfação crescente em que a mente se vê enredada, em sua crescente dependência a necessidades criadas e alimentadas pelo complexo tecnológico.
Para que este motor produtivo pudesse ser liberado, internamente o mundo medieval foi desmantelado e os servos transformados em proletários para a indústria nascente, e externamente, tendo em uma das mãos a espada e as canhoneiras, e na outra a cruz, lançaram-se à invasão e rapinagem das Américas, África e Ásia, impondo a todos esses povos tradicionais o domínio econômico e político, junto às várias tentativas de imposição da catequese cristã (18). Se houve “libertação”, poderíamos perguntar se não foi a libertação da violência da ambição materializante e seus desdobramentos sociopolíticos, e de um ponto de vista psicocultural, a libertação de uma concepção mental dessacralizante do homem e do Cosmos.
Ainda que a difusão do Cristianismo fosse colocada como a dimensão religiosa da expansão colonial, e que a visão cristã pareça ainda ser um dos esteios da modernidade ocidental (19), de fato a ideologia da modernidade se caracteriza por uma negação dos fundamentos espirituais, e esta negação se moverá para todas as áreas da ciência, da filosofia e das artes. A explicação cristã sobre a criação do mundo passaria pouco a pouco a ser contestada como não-científica e apoiada apenas na fé e na crença, o que trazia subjacente uma noção ideológica do que seria uma “visão científica”. A metafísica, no caso a cristã, passou a ser considerada como oposta à ciência; o obscurecimento da compreensão do significado da Metafísica no decorrer da história do pensamento e da filosofia moderna chegou a tal ponto deste termo ser utilizado para designar o que seria incompreensível ao entendimento humano.
Do ponto de vista do conhecimento, o obscurecimento da compreensão da Metafísica acompanha a progressiva ruptura, no Ocidente moderno, dos nexos metafísicos-espirituais que uniam o transcendente com a existência humana, o que implicaria em uma desespiritualização da visão moderna do homem, da sociedade e da Natureza.
A perda desta visão do homem é que caracterizará a emergência de um tipo de ciência, a moderna, cuja tônica é a de que a faculdade humana da razão, aliada às provas empíricas, seria suficiente para dar conta da explicação dos diversos domínios da existência, enquanto os hindus e budistas, em suas complexas estruturas de entendimento, embora dando à razão um lugar importante no conhecimento, subordinam sua ação a um domínio dependente do Intelecto transcendente, Buddhi, cuja forma de acesso às verdades é o da intuição contemplativa e cujo exercício passa pelas exigências de uma prática espiritual estruturada, o que significa uma outra noção do que seja a atividade intelectual.
A perda da intuição e a hegemonia da razão, o que se denominou de racionalismo, terminaria por conduzir ao infra-racional, em que a própria razão passaria a ser negada como forma de conhecimento, em favor não da recuperação da intuição espiritual supra-racional, mas do primado da sensação, cujo lugar na estrutura mental humana é o mais exterior e passível de lançar a mente para a dispersão.
Não é por acaso que em nossa época assistimos ao predomínio da exploração das sensações, do hedonismo, vendidas como o verdadeiro modo de realização da vida. A manipulação das sensações através de maciços apelos dos meios de comunicação de massa cada vez mais sofisticados tecnològicamente é um evidente passo a mais destas rupturas para baixo. As revistas lamentam e se indagam porquê avança o número de jovens envolvidos e mortos pelas drogas.
Já na época de Sócrates e Platão a capacidade de penetração espiritual se encontrava bastante obscurecida no mundo grego, e se Sócrates foi obrigado a tomar cicuta, era porque falava sobre verdades superiores para um povo grego que já não mais conseguia compreendê-las. A capacidade de compreensão dos ensinamentos platônicos sobre os Arquétipos divinos se tornava mais enfraquecida com Aristóteles e o racionalismo já se amplia bastante.
Em Aristóteles, o lado intuitivo de Platão já estava mais ausente, e o compensatório esforço racional de sistematizar o conhecimento metafísico-espiritual, rebaixando a visão mítica para uma leitura filosófica e lógica, como que para preencher o vazio deixado pela retirada dos deuses do Olimpo, é bem visível. O recolhimento da intuição e a exacerbação do racionalismo no Ocidente já vêm do séc. VI a.C.
Quando o mundo grego e romano se decompõe, o racionalismo já estava bastante forte como tendência do Ocidente. Quando o Cristianismo se colocou como via espiritual para o Ocidente de então, sendo uma via puramente interior, não fazia parte de sua natureza o compromisso de criar um corpo de ciências, pois seu propósito era mais o de oferecer uma via de realização espiritual do que o de explicar os vários domínios fenomênicos. Ainda assim, um certo sistema de saber analítico foi construído, articulando a metafísica cristã com fundamentos aristotélicos, o que paradoxalmente contribuirá posteriormente para o aprofundamento da anterior tendência racionalista herdada do mundo grego-romano, enquanto o Cristianismo ortodoxo oriental fará opções pela via mais intuitiva da herança platônica. Essa diferença de opções, sem dúvida está relacionada à diferença de predisposição mental destes povos (20).
Com o Renascimento, a tendência racionalista e a concomitante dificuldade de se entender e penetrar na realidade metafísica-espiritual vai se aprofundar. Na ótica espiritual, o que se chamou de Renascimento foi um movimento específico da Europa pós-medieval, e que tentou recuperar o que era mais exterior do mundo grego, sendo por isso, diz René Guénon, a morte de muitas coisas, e mais um passo na destruição do saber metafísico-espiritual no mundo ocidental.
Pretendeu-se que a partir do Renascimento e do Iluminismo se inaugurava o esforço de se libertar das travas da superstição religiosa cristã e criar um saber científico, renegando que o saber anterior fosse ciência. Afirmava-se implicitamente que todos os outros povos, do extremo-oriente ao extremo-ocidente, não possuíam ciências.
Mas o fato é que, dentro do universo estruturado de tradições como a hindu, os múltiplos níveis do saber possuem seus fundamentos maiores na metafísica espiritual. São saberes do mundo fenomênico segundo vários pontos de vista, mas todos esses pontos de vista e níveis ligam a realidade do mundo existencial com o que lhe é ontològicamente superior e determinante, do corporal subordinado ao sutil e este ao propriamente espiritual, pois é esse Eixo que dá significado a cada coisa segundo seu plano de realidade.
A oposição não estaria entre um saber científico e racional (posto como o novo e verdadeiro modo do saber, e inaugurado pela modernidade pós-renascentista) e o saber metafísico-espiritual ou religioso (posto como dogmáticas crenças dos povos tradicionais, em uma anterioridade cognitiva ultrapassada pelo progresso do conhecimento carreado pelo saber ocidental moderno). Na ótica espiritual, a oposição está entre:
• um tipo de ciência, a moderna, carente de nexos entre o mundo fenomênico e seus princípios ontològicamente determinantes, – estes remetendo ao domínio metafísico-espiritual -, desconexão esta que tenta explicar o mundo em si mesmo e por si mesmo,
• e outro tipo de ciência, as ciências tradicionais, que se fundam nestes nexos metafísicos-espirituais e enxergam o mundo manifesto como presença do Transcendente no imanente, como teofania.
Neste mesmo balaio de equívocos, também está o erro de ponto de vista em colocar ciência como oposição à Metafísica (ou religião). É apenas na modernidade que se criou esta imagem de conflito ciência-religião. É um erro de posição, pois a Metafísica (ou a religião) respondem pela realidade dos princípios transcendentes, o supracósmico, o noumenon, enquanto as ciências se referem ao domínio do mundo fenomênico, o Cosmos, o phenomenon. Por não compreenderem esta distinção fundamental, os pensadores modernos frequentemente lançam críticas à Metafísica (à qual reduzem ao limitado universo aristotélico) através do argumento de que a Metafísica se baseia em um “essencialismo”, pressuposto de que haveria uma “essência” das coisas, mas que isso seria desmentido pela realidade, onde nada subsiste, tudo se mostra como processo cambiante, fluxo em que as coisas e seres se constróem na posição e re-posição das relações dinâmicas determinadas pelo conjunto de condições históricas. A concepção metafísica sobre as essências é um tema bem mais complexo, e que merece espaço mais amplo do que os limites deste trabalho. Mas algo pode ser ponderado aqui.
A crítica colocada à Metafísica é equivocada, pois supõe que as doutrinas metafísicas desconhecem o fato de que a realidade fenomênica é apenas um processo mutável de vir-a-ser. Já esclarecemos no decorrer deste texto que as doutrinas metafísicas colocam claramente que o domínio fenomênico é marcado pela dialética do incessante vir-a-ser, do construir-destruir, do surgir-desaparecer, e este é o significado etimológico do conceito grego de phenomenon.
Mas as doutrinas metafísicas não restringem a noção de “realidade” apenas ao mundo fenomênico. Este é apenas a face efêmera e manifesta da Realidade Infinita, o “lugar” dos princípios universais que sustentam ontològicamente o mundo manifesto, mas que não se confundem com ele. O mundo manifesto é o palco onde se desenrola a peça, o jogo (no sentido do termo inglês play) entre os seres em sua face ilusória e seus princípios fundantes. Mas simultaneamente, os seres não são apenas personagens ilusórios cujas essências estariam ocultas por detrás do palco, como se as essências fossem “algo material” que ao procurarmos dentro da cebola nada encontramos.
Princípios transcendentes e mutável Cosmos fenomênico, as doutrinas metafísicas estão falando de planos diferentes, hieràrquicamente integrados dentro do seu corpo cognitivo, mas que passou a ser vivido como conflito apenas no Ocidente moderno porque a relação hierárquica vertical entre ambos foi ignorada e convertida em opostos no mesmo plano horizontal.
O pensamento moderno pretendeu com isso renegar o estatuto ontológico da Metafísica, e, portanto, do supranatural, para a hegemonia de um tipo de conhecimento científico fundado em uma razão desprovida de nexo com o transcendente. Mas mesmo essa ruptura sendo posta como força dominante, o senso humano de crítica em busca da verdade persistiu, ainda que de modo limitado, nas discussões entre a razão crítica e a razão instrumental.
Os imperativos materiais do lucro, a despeito das análises da razão crítica, puxam a razão experimental para seus bem pagos compromissos de instrumentalização necessária à produção ampliada de mercadorias. É bem conhecido o quanto a nova ciência foi estimulada e serve aos requisitos das indústrias, incluindo as indústrias culturais que hoje ocupam as atividades dos meios de comunicação de massa e a criação da “realidade virtual”, cujas terríveis implicações para a mente humana mereceriam uma reflexão maior.
A razão crítica, entretanto, tal como é exercitada na modernidade, se vê limitada. Pela sua própria natureza de razão, como ratio, significando a capacidade humana de estabelecer proporções e sentidos entre elementos do domínio limitado em que opera, necessita para isso de princípios que lhe permitam ponderar esses elementos e tirar conclusões. Esses princípios, entretanto, não se encontram dados de imediato no empírico, mas estão fundados em um plano ontològicamente superior ao fenômeno, porque lhe são determinantes. Como a modernidade pretendeu ignorar a determinação dos planos ontológicos hierárquicos, ignorando por consequência a dependência da razão para com o Intelecto transcendente do qual procede e que lhe permite ascender ao conhecimento desses planos ontológicos determinantes, o esforço da razão crítica permanece amarrado na superfície dos problemas.
A Ética é uma das dimensões da vida contemporânea em que transparece os efeitos desta limitação da razão, quando desconectada de princípios supramundanos. Leonardo Boff, em seu estudo sobre a Ética, e observando a trajetória histórica da Ética na Grécia a partir de Platão e Aristóteles, observa que o ethos anterior (zelado pelo daimon, o anjo bom, a voz intrínseca da interioridade) foi sendo substituído por um sistema racional de princípios em que a razão se torna demasiadamente instrumental e analítica, que passa a estabelecer uma tecnociência ameaçadora, no sentido de um abandono dos valores humanos básicos.
Ocorre um desequilíbrio entre a tendência da autoafirmação e o da integração humana: “Ao invés de estar junto dos demais seres, colocou-se sobre eles e contra eles. Aí começou a auto-exílio do ser humano, pois foi se afastando lentamente da Casa comum, da terra e dos demais companheiros e companheiras da aventura terrenal. Quebrou os laços de coexistência com eles. Perdeu a memória sagrada da unicidade da vida em sua imensa diversidade. Esqueceu a teia das interdependências, de comunhão com os vivos e com a Fonte originária de todo ser. Colocou-se num pedestal solitário a partir do qual pretende dominar a terra e os céus. Eis nosso pecado de origem que subjaz à crise ética de nossa civilização: nossa autocentração, nossa ruptura fatal. Esta postura de arrogância gerou a maior tragédia da história da vida. As consequências nos alcançam até os dias de hoje e de uma forma perigosa, pois ela criou o princípio de autodestruição da espécie e de seu habitat natural” (21).
Esta operação fragmentante do conhecimento moderno se irradiou por todas as áreas do saber, tanto nas chamadas ciências naturais, com as interpretações naturalistas, como das ciências sociais. O mal-estar da fragmentação de quando em vez irrompe e tentativas de integrar os vários ramos do saber são esboçadas, mas os resultados são irrisórios, pois como integrar ramos quando se renega o tronco e a raiz?
Galhos justapostos não formam uma árvore. A sociedade humana passaria a ser interpretada e reivindicada como o domínio dos homens regidos não mais por um fundamento metafísico-espiritual, mas por um contrato social, um acordo entre homens livres, dissimulando a coerção impositiva da noção de Estado-nação, cujo modelo europeu se tornou imperativo para todos os povos do mundo, forçando todos os povos originários à submissão a uma forma de organização uniformizante e desprovida de qualquer fundamento espiritual.
E quando alguma etnia indígena reivindica seu estatuto de identidade como um povo-nação com um modo próprio de ser e reger sua vida, de acordo com a tradição instituída por seus criadores míticos, aspiração que muitas vezes vem acompanhada da reivindicação de autonomia, o suposto “contrato por acordo entre homens livres” mostra sua efetiva realidade. Se é verdade que na fase atual o próprio conceito de Estado-nação vem sendo parcialmente enfraquecido, não é para a constituição de uma fraternidade supranacional dos povos, mas pela emergência de um conglomerado de corporações transnacionais que controlam a economia, a política e a cultura segundo seus interesses privados materiais.
Se passarmos do âmbito das ciências sociais para o domínio da teorização sobre o psiquismo humano, vamos observar o surgimento de uma Psicologia propondo-se a construir uma ciência do psiquismo humano, como se ela não existisse já formulada há séculos dentro do corpo de conhecimento de cada Tradição. Também aí reencontramos a mesma ruptura, no propósito de constituir uma ciência do psiquismo sem o princípio metafísico-espiritual que governa o psiquismo. O homem passaria a ser configurado não mais como constituído por uma complexa síntese do corporal, anímico e espiritual, ou corpo-mente-espírito, mas reduzido apenas a uma individualidade psicofísica, o Ego, entidade sem substância inerente, ilusória, agora erigida em categoria e realidade central do homem, dividido entre uma razão fragmentada e um subconsciente tenebroso.
Considerado pelos hindus e budistas como realidade ilusória e voraz, necessitando ser compreendido e educado pela maestria de princípios espirituais mais profundos, na modernidade o Ego seria liberado pela negação do estatuto ontológico do supraegóico. Aquele ego, que os hindus e budistas explicam ser apenas um fluxo de agregados impermanentes, é posto no trono como uma entidade substantiva e com todos os direitos de desejo reinante. Os conceitos só revelam seus significados verdadeiros à luz do universo doutrinal em que se ancoram, e se há um fazer ciência, é o de trazer às claras a trama oculta destes fenômenos e suas nomeações, essas palavras, seus ambíguos sentidos e seu contexto. Na noite, pode ser visto como cobra o que se mostrará à luz do dia como apenas uma corda velha enrolada, exemplifica os hindus e budistas.
Desconectada a sociedade de sua raiz metafísica-espiritual, desconectada a razão de seu intelecto transcendente, desconectado o homem de sua natureza luminosa mais profunda e destinação espiritual, o homem moderno se vê na “liberdade” da prisão do apetite frenético de seu Ego e da manipulação do globalismo de terríveis senhores. Estão aí colocadas, de modo sucinto, duas visões, o da modernidade e o da tradição hindu, budista e taoísta, com todas suas implicações, para serem refletidas e aprofundadas. No Tempo, o tempo dirá.
Mas aquele que obedece à Natureza
Retorna através da Forma e do Sem-Forma ao Vivente
E no Vivente une o começo que-não-começou.
A união é a Igualdade. A igualdade é o Vácuo.
O Vácuo é infinito.
No meu fim está o meu começo.
(Chuang Tzu)

Notas

(2) Coomaraswamy, Ananda – Hindouisme et Bouddhisme, p.25, France, Ed. Gallimard, 1980.
(3) Elourduy, Carmelo – Dos grandes maestros del Taoismo, p.101-102, Madrid, Ed. Nacional, 1983.
(4) Guénon, René – A Crise do Mundo Moderno, p.81-82, Lisboa, Véga, 1977. Uma das análises críticas mais agudas do mundo moderno foi elaborada por René Guénon neste livro referido, e do qual muitas colocações foram aqui incorporadas. As reflexões críticas de Guénon em sua vasta obra de mais de três dezenas de títulos, bem como de outros autores como Ananda e Rama Coomaraswamy, F. Schuon, T. Burckhardt, Martin Lings, Seyyed H. Nasr, W. Stoddart, M. Pallis, que se empenharam em esclarecer as contradições do mundo moderno à luz da metafísica tradicional, ainda estão por serem descobertas pelos círculos acadêmicos.
(5) Guénon, René – idem, op.cit., l977, p.83.
(6) Guénon, René – Introduction Générale a l’Etude des Doctrines Hindoues, p.161, Paris, Véga, 1976.
(7) Eliade, Mircea – Mito e Realidade, SP, Ed. Perspectiva, 1972.
(8) Coomaraswamy, Ananda – idem, op. cit., 1980, p.25-26.
(9) Elourduy, Carmelo – idem, op.cit., p.130.
(10) O tempo é considerado apenas como uma das formas de sucessão, aquela que define um dos degraus da manifestação universal, da qual participa o estado humano.
(11) Sobre uma reflexão crítica do evolucionismo darwiniano, veja Douglas Dewar, The Transformist Illusion, USA, Sophia Perennis et Universalis, 1995. Neste trabalho, com base em um vasto conjunto de dados biológicos, o autor põe em questão e refuta cientìficamente os vários pressupostos da hipótese evolucionista. Veja também Michael Denton, Evolution: A Theory in Crisis; Phillip E. Johnson, Darwinism on Trial; Titus Burckhardt, Mirror of the Intellect, SUNY Albany, 1987.
(12) Guénon, René – idem, op. cit., p.36, 1977.
(13) Merton, Thomas – A via de Chuang Tzu, p.102, Petrópolis, Vozes, 1977.
(14) Segundo Tsong-Khapa, fundador da ordem de Dalai Lama e de acordo com o testemunho de Marco Pallis, cf. referência em R. Guénon, 1977, nota 1, p.28.
(15) O conceito de dharma (dhamma, em Páli) é complexo e de difícil tradução para as línguas ocidentais, exigiria maiores elaborações. Da raiz sânscrita dhr, significa “o que sustenta, o que suporta”, daí o sentido de “Lei, dever, justiça, modo correto de ação, estabilidade”. Na análoga raiz grega drus, nome grego do carvalho, está sua acepção de axialidade no símbolo da Árvore.
(16) Coomaraswamy, Ananda K. O pensamento vivo de Buda, p. 241. São Paulo: Livraria Martins, 1967.
(17) Depoimento de Davi Kopenawa Yanomami, Yanomami: a todos os povos da Terra, Ação pela cidadania, CCPY/Cedi/Cimi/NDI, 1990, p.11.
(18) Sobre isso, veja o excelente trabalho historiográfico da invasão ocidental sobre a Ásia em K.M.Pannikar, A Dominação ocidental na Ásia, RJ, Paz e Terra, 1977. A questão da relação de violência entre a expansão colonial e o missionarismo cristão merece um estudo à parte. Pannikar oferece grande quantidade de dados históricos e ideológicos sobre esse aspecto, mas uma análise mais complexa necessita ser feita, pois se é verdade que as religiões semíticas são por natureza expansionistas, o modo de associação com a violência colonialista não só não é intrinsecamente necessário como oposto aos próprios princípios do Cristianismo. Sobre isto, veja Buddhismo e Christianismo: Esteios e Caminhos, Arthur Shaker F. Eid. Petrópolis, Ed. Vozes, 1999.
(19) A despeito do caráter sacro do poder político ter persistido até a Revolução Francesa, e ainda que possamos distinguir sob certos aspectos seu conteúdo no poder imperial durante a Idade Média e com as realezas nacionais na Idade Moderna (sobre isto veja Os dois Corpos do Rei, E. Kantorowicz, SP, Companhia da Letras, 1998), de fato o poder político caminhou para um conteúdo secular na modernidade. A questão da relação entre poder político e o Cristianismo mereceria uma reflexão mais apurada, pois há uma certa fratura estrutural entre ambos, dado que por sua natureza espiritual intrínseca, o Cristianismo é originalmente uma via espiritual interior, portanto sem um estatuto político-jurídico como em outras tradições, como o Islamismo ou o Hinduísmo. Sobre as razões metafísicas que teriam levado o Cristianismo a legislar sobre a política, e as contradições decorrentes, veja René Guénon, Aperçus sur l’Esoterisme Crétien, Paris: Ed.Traditionelles, 1980; F. Schuon, Da Unidade Transcendente das Religiões. SP: liv. Martins Ed., 1953; e outras referências em Buddhismo e Christianismo: Esteios e Caminhos, op. cit.
(20) Sobre o processo histórico de desespiritualização do saber ocidental, ver Seyyed H. Nasr, O Homem e a Natureza. RJ: Zahar, 1977.
(21) Boff, Leonardo – Ética e moral: a busca dos fundamentos, p. 16-17. Petrópolis, Vozes, 2003.

Arthur Shaker

arthur.shaker@gmail.com
Projeto Uirá – Sabedorias Milenares dos Povos Originários
https://arthurshaker.blogspot.com/
https://casadedharmaorg.org/2014/06/30/artigos-arthur-shaker/

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