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A ESPIRITUALIDADE INDÍGENA E OS 500 E TANTOS ANOS DA AMBIÇÃO OCIDENTAL

Carta aos amigos indígenas,

Amigos. Os povos indígenas têm enfrentado muitos sofrimentos desde que a civilização ocidental chegou aqui nas Américas. Forças escuras estão se movimentando pelo mundo já fazem mais de quinhentos anos, trazendo muita dificuldade para os povos tradicionais de toda parte do mundo. Ainda vamos ter um tempo difícil. Para continuarmos defendendo nossas tradições que vem dos antigos, estamos procurando entender o que são essas forças escuras e como lidar com elas.

Foi a ambição que veio aqui nas Américas, e na África e na Ásia. Sabemos disso. A ambição é uma doença que queima dentro da mente dos homens desde os tempos mais antigos. De onde vem a ambição? Temos dentro de nós o fogo dos espíritos, esse fogo que vem do Invisível. Mas quando não entendemos corretamente o que é esse fogo e como dominá-lo, esse fogo vira ambição que engana e destrói. É isso que acontece com os warazu (os juruá, napë, os não-indígenas, homem ocidental, branco, nas línguas Xavante, Guarani, Yanomami.

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Esse fogo é sabedoria e poder, luz e calor. Os Mbyá-Guarani ensinam que Ñamandu Ru Ete, quando criava o mundo, disse a Karai Ru Ete, o dono do fogo, para colocar pelo alto da cabeça dos humanos o fogo sagrado, tataendy, para trazer a força. Mas para esse fogo não criar um calor muito grande e perigoso, Ñamandu disse a Tupã Ru Ete, o senhor das águas e do trovão, para colocar no coração dos humanos a temperança, a moderação, yvára ñemboro’y.

Dominando esse fogo, os xamãs conseguem viajar e sonhar com outros mundos, mais profundos. Mas, conhecer e controlar esse fogo é difícil, precisa de muito esforço e orientação correta. Só um povo tradicional tem os poderes para isso. Quando falamos tradicional, Tradição, os pensadores modernos ficam agitados, não querem entender. Pensam que é coisa atrasada, ultrapassada, contra o progresso. Somos povos tradicionais porque o que nos sustenta e dirige são as regras que nossos criadores espirituais trouxeram do magnífico mundo dos espíritos. Isto é a nossa Tradição.

Os pensadores modernos dizem que os povos indígenas são muito diferentes um do outro, por isso não é possível falar em “povos tradicionais”, pois um não tem nada em comum com o outro. E não tendo nada em comum, não seria possível reunir os povos indígenas. É verdade que há muitas diferenças entre os povos indígenas, e essas diferenças são importantes e devem ser respeitadas. Os Sioux da América do Norte são diferentes dos índios Maya da Guatemala, os Xavante do Brasil são diferentes dos Aymara do Peru, são muitos os povos indígenas, com línguas e tradições diferentes. Mas todos falam que a origem do seu povo, e dos animais e plantas, é uma origem espiritual.

Estou usando palavras para falar desse mundo espiritual, palavras como espírito, espiritual, espiritualidade, fundamentos espirituais. Eu sei que são nomes que vem das línguas ocidentais não são as palavras da língua indígena, e por isso não traduzem corretamente o pensamento indígena, e por isso devem ser consideradas com cuidado. Mas servem para nosso início de diálogo.

É verdade que cada povo indígena tem seu jeito de viver e se comunicar com o mundo dos espíritos. Mas aí está também uma verdade que é a base de todos os povos indígenas: todos falam que seus criadores tinham um grande poder espiritual, que tudo que é vivo tem seus espíritos, todos falam que este mundo está ligado ao Invisível. Os povos indígenas são diferentes, mas todos vieram do Invisível. É como o arco-íris no céu: são muitas cores, mas todas vêm da Luz branca, que passando pelas águas das nuvens, se abre em muitas cores. Será que o Invisível não é o Grande Mistério da origem de todos os povos e animais e plantas e espíritos?

Tudo que é vivo tem dentro dele esse fogo do Invisível. É esse fogo que faz tudo nascer, crescer e ficar alegre e dançar contente. Quando os seres de poder criaram o mundo, eles ensinaram para seu povo as leis de viver de um jeito que esse fogo não queimasse tudo. São as leis da Tradição, para defender os humanos, as árvores e animais e conversar com os espíritos. Nas tradições antigas da Índia, de onde vem minha formação tradicional, essa Lei que sustenta e está presente em tudo, chamamos de Dharma. Os ocidentais esqueceram dessas leis, o fogo virou ambição e tomou conta do pensamento deles, como uma jibóia de boca bem grande comendo tudo sem parar, nunca está satisfeita, até que um dia explode.

Quando falamos de mundo moderno, não estamos falando de raça ou cor de pele, pois lutamos contra qualquer tipo de racismo e preconceito. Quando falamos de mundo moderno, estamos nos referindo a um tipo de mentalidade, a mentalidade moderna que começou no Ocidente e que foi se espalhando pelo mundo há quinhentos anos, e que é dominada por uma visão e uma atitude materialista desespiritualizada diante da vida e dos povos tradicionais.

Ilustração 2

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Esta ambição da civilização moderna é uma semente que já estava plantada dentro do mundo desde o seu começo. Os homens de sabedoria da Índia dizem que o mundo nasce já com todas as sementes que vão brotar. No começo o mundo é mais brilhante, brotam as sementes de mais poder e luz espiritual, o mundo estava mais perto da magnífica origem. Por isso, dizem muitos povos indígenas, nos tempos muito antigos a palavra era criadora, era só dizer e as coisas apareciam. Os Xavante contam que no tempo dos criadores todos tinham poder, mas havia alguns seres especiais, que tinham muito mais poder, eram os criadores. Podiam criar só com a vontade, pensavam e se criava os alimentos e os animais, já com os nomes.

Muitas leis começaram a ser quebradas, isso era inevitável pela própria tendência do mundo, e com isso muito desse poder espiritual foi se perdendo. O ciclo cósmico vai se des-enrolando e vão brotando mundos com menos poder e luz, cada vez se afastando mais desse poder metafísico, se materializando em velocidade crescente. Até parar, aí é o fim de um mundo. Muitas tradições já apareceram e desapareceram.

Não é que uma tradição se acabe, ela apenas volta para dentro do Grande Mistério Invisível. Não ouvi nenhum povo tradicional dizer que o mundo vai ficando mais luminoso. Essa ideia do progresso e da evolução foi inventada pelo pensamento do mundo ocidental moderno. Para os povos tradicionais, é ao contrário. A tradição hindu diz que o Cosmos caminha para baixo. Na civilização ocidental moderna, o materialismo foi crescendo muito, a ambição deles vai tomando conta de tudo, destruindo a Natureza e os povos indígenas. Essa doença hoje já se espalhou pelo mundo inteiro.

A invasão sobre as Américas, a África e a Ásia faz parte dessa tendência cósmica para baixo. Nada é por acaso. Diz a tradição hindu que estamos já há muito tempo na quarta e última etapa desse ciclo, fase chamada de Kali Yuga, a Idade Sombia. Esta verdade também aparece em muitas tradições indígenas. A espiritualidade do mundo e dos homens vai se perdendo ràpidamente, o tempo passa correndo cada vez mais.

Cada vez mais sombrio e pesado, o mundo vai sendo puxado para baixo, como a correnteza do rio arrastando tudo. Para lutar contra essa correnteza, nós, os povos tradicionais, temos os rituais e conhecimentos para defendermos o equilíbrio da vida na Terra e mantermos a comunicação com o mundo dos espíritos. Mas vai chegar o tempo em que não vai dar mais para proteger o mundo.

Os ocidentais também tinham suas leis espirituais no Cristianismo. Mas já faz mais de quinhentos anos que eles começaram a quebrar essas leis e virar as costas para os valores cristãos da tradição deles. Os ocidentais faziam um pouco de comércio com os povos do Oriente, mas quando um outro povo guerreiro fechou a passagem deles por terra, o comércio ficou difícil. Então os grandes comerciantes ocidentais resolveram se aliar com os governantes e deram muito dinheiro para seus navios procurarem caminhos pelo mar para o comércio. Começaram as grandes navegações, procurando terras e riquezas. A ambição começou a crescer.

A tradição deles, o Cristianismo, ensinava que eles deviam viver uma vida de respeito e amizade com os outros, e que o pensamento deles deveria estar sempre no Deus. Que não se deveria ter muita ambição com as coisas materiais, mas se esforçarem para seguir o exemplo do Cristo e alcançar o céu, onde tudo é bom. Mas eles foram esquecendo disso. A tradição deles começou a enfraquecer. Riqueza e lucro viraram o grande desejo deles. Queriam ter bastante lucro, tomar as terras e as riquezas dos outros, só pensavam nisso. Foi virando uma febre dentro da cabeça deles.

Aquelas sementes da ambição material que estavam guardadas dentro do mundo desde os tempos antigos começaram a querer crescer como fogo na floresta. E foram os ocidentais que abriram as portas para essas sementes terríveis crescerem com uma força violenta. Os antigos dizem que isso ia acontecer, que ia ter de acontecer, porque as sementes escuras também estão dentro deste mundo, iam ter de brotar e crescer e se espalhar até se esgotarem. As histórias dos povos antigos contam que já aconteceram coisas parecidas em outros tempos do passado. Mas agora o perigo é muito maior e está ameaçando o equilíbrio espiritual de toda a Terra. Por isso os antigos dizem que a civilização moderna é a loucura e vai destruir este mundo.

O líder espiritual indígena Davi Kopenawa, do povo Yanomami, fala que rotukala, o mundo, está cansado. Que vai chegar a hora em que o nosso mundo vai explodir. Falou que um dia os “brancos” (os napë) vão lembrar dessas palavras dele, porque a poluição está aumentando, está chegando na floresta, está matando as árvores, está caindo nos rios e matando os peixes. A poluição cai na cidade e vai longe porque o vento leva. Falou que os índios que estão cuidando deste planeta estão ficando doentes, e quando rotukala cair encima da gente, não vai ter para onde correr e se esconder. A civilização moderna é como uma cobra engolindo os povos indígenas. Quando todos os xamãs morrerem, o mundo vai virar, vai quebrar, e ninguém vai escapar, nem os brancos. O céu vai explodir. Vai cair e achatar a Terra. Sua Santidade o XIV Dalai Lama nos lembra que se os homens pudessem ver os terríveis frutos de suas ações kármicas não-saudáveis, mudariam ràpidamente a direção de suas ações destrutivas para com os seres humanos, não-humanos e o planeta Terra.

A civilização moderna não chegou aqui por acaso. Foi a doença da ambição de muita produção material que trouxe os ocidentais aqui. Para abrir caminho para esta doença, eles começaram primeiro destruindo o jeito antigo da vida deles. O povo deles que trabalhava na terra perdeu o direito de trabalhar na terra e foram quase todos mandados embora para as cidades que começaram a crescer. Quando chegavam nas cidades eram obrigados a trabalhar nas fábricas que estavam aparecendo. Ajuntavam aquela multidão de gente que nem bicho preso dentro daquelas fábricas fechadas, escuras, um mau cheiro. Os homens, mulheres, crianças, tinham de trabalhar naquelas máquinas o dia inteiro, fazendo todo dia sempre a mesma coisa. A sociedade moderna gosta muito de mostrar com orgulho seus produtos industriais, fala muito em progresso, desenvolvimento, mas quem trabalha dentro de uma fábrica sabe que a verdade é diferente, que aquilo é um sofrimento grande, aquilo não é vida de gente. Os povos indígenas nunca aceitaram esse jeito ruim de trabalhar dos ocidentais.

A doença da ambição material estava crescendo. Aí eles mandaram os navios deles encima das terras das Américas, da África e da Ásia. Eles chegaram trazendo em uma das mãos a espada e os canhões, e na outra a cruz e a Bíblia. Nesses quinhentos anos de invasão eles diziam que vinham trazer a salvação do Cristianismo, que o Papa tinha benzido e dado essa missão para eles. Eles diziam que eram uma civilização cristã, mas na verdade essa civilização é o contrário de tudo o que é cristão, é o contrário de qualquer espiritualidade verdadeira. Eles viraram as costas para aquilo que eles rezam. Eles começaram a virar as costas em primeiro lugar para a própria tradição deles. Diziam que eram cristãos, mas começaram a duvidar da própria explicação cristã deles sobre a origem do mundo. Começaram a duvidar se era verdade mesmo que o mundo tinha sido criado pelo Deus que eles rezavam. Queriam provas.

Aí começaram a inventar um tipo de pensamento que chamaram de “ciência”. Acharam que a visão espiritual cristã não era ciência, que não tinha provas, e era só uma crença. Se já não entendiam mais nem a espiritualidade cristã, que é a base do mundo ocidental, não iam ter sabedoria para entender a visão espiritual dos povos indígenas, que é tão diferente do Cristianismo. Para eles os povos indígenas não tinham religião, por isso precisavam ser salvos do inferno e levados pelos missionários para o Deus cristão.

Os missionários acreditavam que estavam fazendo um bem catequizando os índios, muitas vezes pela força, ajuntando povos indígenas de culturas diferentes em aldeamentos, proibindo os costumes e a língua indígena. Além disso, os índios tinham de enfrentar a violência dos colonos e seus governantes, querendo escravizar sua gente, aqueles invasores entrando cada vez mais para dentro de seus territórios, roubando suas terras e destruindo suas aldeias. Os missionários às vezes ficavam chocados com a violência dos colonos sobre os índios, porque os colonos diziam que eram cristãos, mas agiam com uma brutalidade que era o contrário de tudo que o Cristianismo ensinava. Os missionários às vezes protegiam os índios contra a violência, mas os missionários também tiveram uma parte de responsabilidade nesta violência dos invasores.

Hoje em dia falam que os homens modernos também aprenderam muitas coisas com o contato com povos indígenas. Será que aprenderam mesmo? Isso não aparece no pensamento deles. Pelo contrário, o Ocidente desde aquela época está sempre inventando um pensamento que não tem nada de espiritual. No pensamento que eles inventaram, os homens, a sociedade e a Natureza não têm mais espírito. Todos os povos tradicionais falam que nosso mundo visível é só uma aparência, uma sombra do outro mundo magnífico e luminoso, o Invisível. Nosso mundo é como um espelho que só reflete um pouco do brilhante mundo dos espíritos. São muitos os mundos povoados de espíritos enfeitados, esses mundos são como camadas de luz até o Grande Mistério. Nenhum povo tradicional diz que só tem esse mundo material visível. Nosso mundo é só a superfície de um Oceano Luminoso Infinito.

Muitos pensadores da sociedade moderna dizem que esse conhecimento dos povos indígenas não é ciência, é só uma “crença”. Eles estudaram muito os povos indígenas de toda parte do mundo, mas parece que não entenderam direito. Porque eles chamam de “crença” a sabedoria dos povos indígenas? Usam essa palavra “crença” para diminuir o valor do conhecimento tradicional. Como a “ciência” moderna não tem mais nenhuma ligação com o Invisível, querem com isso reduzir a força da sabedoria indígena com o nome de “crenças religiosas”. Às vezes até dizem que essas “crenças indígenas” devem ser respeitadas porque são o pensamento dos povos indígenas, mas no fundo muitos deles acham que o conhecimento indígena não tem a mesma força de verdade da “ciência” moderna. No fundo, ainda pensam que o Ocidente fez um grande progresso no conhecimento, deixando para trás o conhecimento espiritual cristão e criando “o verdadeiro conhecimento científico”. Mas o que é esse “verdadeiro conhecimento científico” que eles inventaram?

Quando estudamos de perto, percebemos que é só no pensamento dos ocidentais modernos que apareceu esta ideia inventada de achar que só existe esse mundo visível, e que o homem veio do macaco. Eles colocam o conhecimento materialista deles como “o científico e verdadeiro”, enquanto que o conhecimento dos povos antigos seria “crenças religiosas” e “não-científico”. Mas a verdade é outra: são dois tipos de ciências, só que a ciência moderna não liga o mundo visível com sua Raiz Invisível. As ciências dos povos tradicionais, pelo contrário, estão sempre vendo este mundo ligado ao Invisível. Quer dizer que o conflito não é entre “ciência” e “crença religiosa”, mas entre dois tipos de ciência: a ciência moderna que não tem espírito e as ciências tradicionais sagradas. Não é que a ciência moderna esteja totalmente errada. Ela tem uma visão quantitativa dos fenômenos e baseado nisso criou a tecnologia moderna. Mas o problema é que sua visão quantitativa é só a superfície dos fenômenos, por isso ela não pode pretender ser a visão única e a mais correta dos fenômenos, pois ela não tem a qualidade e profundidade do conhecimento tradicional.

Por exemplo, o Sol.

Para a ciência moderna, o Sol é apenas uma massa de gases explodindo e produzindo energia em forma de luz e calor.

Mas para os Desâna, o Sol é mais que isso. De acordo com seus relatos míticos, em seu livro Antes o Mundo não existia, o Sol é a criação de Yebá bëlo, a avó do universo, e seu bisneto, Yebá ngoaman. Com seu cetro-maracá, yéi waí ngoá, enfeitado com mahá weá iëhse (araras, muitas penas) e com abé põn mihi (sol, brincos), a ponta do bastão-maracá se transforma em um rosto humano que irradia luz. Era o Sol, sendo criado, aparecendo.

Ilustração 5

Estamos hoje vivendo uma grande crise ecológica. Muitos estão preocupados com a rápida destruição do meio ambiente. Isto é porque a civilização ocidental cortou a ligação entre a Natureza e o Invisível. Tirou da Natureza sua qualidade espiritual e transformou a Natureza em um objeto de consumo, uma matéria sem espírito, que serve só como matéria-prima para a produção de mercadorias. Muitas medidas estão sendo pedidas para defender o meio ambiente, isto é importante, mas é preciso mostrar que a Natureza está sendo destruída por causa da grande ambição de consumo que tomou conta do mundo, ambição estimulada pela ânsia do produzir industrial. Muitos querem salvar a Natureza, mas não querem diminuir seu apetite consumista. Davi Kopenawa, em seu livro “A Queda do Céu”, diz que os napë têm uma “paixão pelas mercadorias”. O que se chama hoje de “crise ecológica” é também consequência da visão antiespiritual e consumista do mundo moderno.

O mundo moderno virou as costas para seu objetivo e responsabilidade espiritual pelo planeta. Por isso a Terra está cansada. Por isso os xamãs dizem que quando eles acabarem, o mundo acabará, porque são eles que ainda lutam para defender o equilíbrio espiritual do mundo. Mas tudo neste mundo tem limite.

Não foi só da Natureza que foi tirada a espiritualidade. A mentalidade moderna também inventou uma sociedade sem espírito. A mentalidade moderna inventou uma sociedade que não é mais governada por leis espirituais, mas por leis inventadas pelos homens. Todos são considerados iguais e livres, mas quem manda fortemente é o poder econômico. Este modelo ocidental de organização foi imposto para todos os povos, e trata os povos indígenas com discriminação e preconceito, forçando os povos indígenas a aceitar leis que não são as leis que seus criadores espirituais ensinaram. Quando um povo indígena reclama o direito de seguir suas próprias leis, e afirma que são um povo com identidade própria, aí se vê que liberdade, igualdade e fraternidade são apenas palavras que não chegam até o direito indígena. Mas os povos indígenas vêm aprendendo a conhecer as leis constitucionais para defender seus direitos à vida.

A mentalidade moderna também roubou o espírito do homem. Inventou uma imagem de homem só de corpo e cérebro, uma barriga com muita fome e uma cabeça em que só funciona o pensamento racional e as sensações. Isso é o que vemos, a mentalidade do racionalismo. O racionalismo é uma forma de ver o mundo sem espírito. Os povos tradicionais também sabem usar o pensamento racional, a razão é uma qualidade humana importante, mas sabemos que a razão sozinha não é suficiente. A razão só trabalha corretamente quando é orientada pela voz do Espírito, que mora não no cérebro, mas no coração interior profundo.

Sem o entendimento de nosso espírito mais profundo, o fogo interior se transforma em loucura que destrói o mundo. É isso que estamos vendo. A violência sobre os povos indígenas desde a mais de 500 anos não é apenas uma violência física e mental. É a violência de uma civilização sem fundamentos espirituais sobre os povos orientados por princípios espirituais, trazidos por seus ancestrais míticos. A violentação agora é a vulgarização da espiritualidade e dos conhecimentos e ritos tradicionais. Depois de ter vulgarizado as tradições africanas e orientais, a sociedade moderna está agora querendo vulgarizar as tradições indígenas. Estão pegando as plantas sagradas dos povos indígenas e usando em seitas que se dizem “espiritualistas”. E ganham dinheiro vendendo as plantas para outros países. As plantas sagradas dos povos indígenas podem ser retiradas para fora do ambiente de seus ritos tradicionais e usadas por seitas que não têm a formação espiritual indígena? Não seria isso uma mistura perigosa e equivocada, inventada por pessoas que não sabem quais são as exigências e princípios de uma Tradição legítima? O que os líderes espirituais indígenas acham disso?

Amigos indígenas, gostaríamos de intercambiar os verdadeiros conhecimentos entre nossa tradição espiritual da Ásia (Índia, Sri Lanka, Tailandia) e suas tradições indígenas, e com isso fortalecer nossos espíritos e assim atravessarmos esses tempos difíceis. Gostaríamos de receber notícias sobre o que vocês pensam desta carta. Fortalecendo nossos espíritos, quem sabe possamos também ajudar aqueles que querem entender o que está acontecendo e encontrar de novo o verdadeiro caminho espiritual que eles tinham, mas que um dia perderam ou esqueceram.

Que os povos indígenas, e todos os povos e seres humanos que se norteiam pelo bem, possam ser felizes, saudáveis e pacíficos, e seguirem seus caminhos rumo ao Incondicionado.

P.S. Este texto foi escrito em 1998. Mais de vinte anos se passaram. As diretrizes do mundo, mudaram de lá para cá?

Arthur Shaker

a Espiritualidade indígena
e os 500 e tantos anos da ambição ocidental

Arthur Shaker

arthur.shaker@gmail.com

Instituto Uirá Lokuttara Magga
Projeto Uirá – Sabedorias Milenares dos Povos Originários
ESABE – Espaço de Saberes

http://arthurshaker.blogspot.com/

Ilustrações

Ilustração 1 in Francisco M.P.Teixeira, José Dantas: História do Brasil, da Colônia à República”. p. 120, Ed. Moderna, SP, 1979.

Ilustração 2 (Capa) O desembarque de Cabral em Porto Seguro, pintura a óleo de Oscar P. da Silva, in José Dantas, idem, p. 36.

Ilustração 3 in Elza Nadai, Joana Neves, História da América, p. 29, 33,
Ed. Saraiva, SP, 1986.

Ilustração 4 in José Dantas, idem, p. 61.

Ilustração 5 Umúsin P. Kumu e Tolamãn Kenhíri, Antes o Mundo não Existia, fig. 4, p. 196, Liv. Cultura Editora, SP, 1980.

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